O grupo “Interpretar e Aprender” surgiu como ideia nos corredores da Universidade de São Paulo por três estudantes de História interessados em integrar diversão e aprendizagem. Apaixonados tanto por narrativas fantásticas quanto pelo ato de ensinar, estes amigos decidiram criar um grupo cujo intuito seria trabalhar, de forma prazerosa, os conteúdos escolares - e não haveria melhor maneira de fazê-lo do que utilizando o RPG, ou Role Playing Game.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

As quests nossas de cada dia

   Há alguns anos, a designer de jogos Jane McGonigal desenvolveu um jogo chamado SuperBetter, ou, em tradução livre, SuperMelhor. Sua premissa, apesar de audaciosa, é simples: utilizar-se dos sistemas de recompensa dos jogos para tornar a vida do usuário mais saudável. Diferentemente do Wii, contudo, ele está menos voltado para os exercícios físicos e mais voltado para estímulos que desenvolvam a força de vontade de quem o joga.
  
 O jogo não foi, contudo, projetado inicialmente para ninguém senão para sua própria criadora. Depois de sofrer uma grave concussão em um acidente de carro, McGonigal passou a experimentar episódios de depressão e a se sentir tentada a acabar com sua própria vida. Para lidar com o momento difícil em que vivia, criou um conjunto de metas a serem atingidas através do cumprimento de sequências de tarefas. Estas atividades deram a McGonigal estímulos positivos que acabaram por melhorar sua qualidade de vida.


    Um misto de auto-ajuda e jogo, o SuperBetter propõe quests (as tarefas, claro), cuja complexidade aumenta conforme se avança, na busca por uma epic win (o cumprimento das metas estabelecidas) fazendo uso de uma linguagem e estética típicas da cultura gamer. A curiosidade por saber qual será a próxima tarefa, o estímulo positivo de se conquistar pontos por realizá-las, estas são algumas das ferramentas do mundo dos jogos que pautaram o desenvolvimento do jogo. Baseado em novas pesquisas que buscaram entender melhor as interações psicológicas envolvendo os jogos, o SuperBetter tem ajudado pessoas a lidar com problemas que vão da depressão à obesidade.

   O site do jogo é bastante interessante, possuindo uma identidade visual agradável e estimulante. Seus textos são bastante claros e permitem que seus usuários entendam a justificativa por trás da utilização de cada um dos itens que constituem o jogo. Durante meu pequeno período de férias, eu joguei por uma semana (até acabar uma sequência de quests) e experimentei o poder do condicionamento comportamental por mim mesmo, o que me levou a algumas reflexões.

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   Meses atrás, eu vinha lecionando para um menino que apresentava sérios problemas de concentração e de disciplina durante nossas aulas particulares. Como apresentava dificuldades em História, pensei em utilizar uma das aulas para tentar fazê-lo imaginar como era viver no período estudado, utilizando-me, naturalmente, do RPG. Fiquei muito receoso de fazê-lo, naturalmente, uma vez que não sabia se meus coordenadores concordariam com a ideia ou se a mãe do aluno não acabaria reclamando, por ver o jogo como uma perda de tempo.

   Um belo dia, tomei coragem e experimentei o jogo com o menino. Àquela altura, nossa relação já não era das melhores, mas, ao menos durante aquela aula, ele me pareceu muitas vezes mais interessado em entender o que se passava no universo do jogo do que em qualquer outra aula sobre o mesmo tempo. O aluno comentou com a mãe, que, previsivelmente, reclamou com meu coordenador que aquilo não havia sido uma aula, mas uma brincadeira. Apesar de meu coordenador não ter achado a ideia ruim, não repeti o jogo com o menino, nossa relação não melhorou e seu desinteresse se manteve até o término do ano letivo e de nossas aulas.

   Algum tempo depois, me vi em uma situação parecida: um aluno inquieto e desconcentrado, com quem as aulas vinham se tornando cada vez mais cansativas, mas que possuia uma ótima relação comigo. Em um momento de impaciência, transformei uma sequência de exercícios em monstros e armadilhas de uma masmorra pela qual o personagem dele tinha que passar. Cada exercício lhe garantia pontos de experiência que poderiam ser trocados por habilidades que poderiam lhe ajudar em novos exercícios - mas nunca resolvê-los. O resultado desta aula foi bastante satisfatório e o desempenho dele na resolução das questões melhorou bastante.

   A coordenadora destas aulas adorou a ideia e me incentivou para utilizá-la novamente. Algumas semanas depois, preparei uma sequência de jogos, fiz com que ele me escrevesse uma redação, criei recompensas e punições dentro do universo do jogo e suas notas melhoraram sensivelmente. Se, com o primeiro aluno, o que fiz foi uma aventura para que ele 'experimentasse' o período histórico que estudávamos, buscando esconder o aspecto didático do jogo, com este aluno eu não fiz questão nenhuma de escondê-lo. Ele sabia que os jogos, ali, eram apenas uma roupagem diferente para os mesmos conteúdos e exercícios - e ele topou e gostou da ideia.

    Alunos diferentes reagem diferentemente a estímulos iguais e alguns são mais predispostos a se envolverem com jogos do que outros e nem todos gostam deste tipo de jogos, claro, tudo depende de como foram acostumados. O que não se modificou nestas duas experiências, contudo, foi o maior envolvimento de ambos com os conteúdos escolares, a partir do momento em que houve uma preocupação em torná-los mais interessantes e aproximá-los do universo cognitivo e emocional dos alunos.

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   Pensando nas quests que o SuperBetter apresenta (que podem ir de contar de 100 a 0, de trás para frente, de sete em sete números e dar uma volta no quarteirão a conhecer uma pessoa nova ou ir para um lugar onde nunca se foi antes) e nas aulas com jogos, assim como em alguns amigos pessoais de minha terra natal, notei que, por vezes, traduzir algumas tarefas ou exercícios para a linguagem dos jogos é tudo o que se necessita para levar alguém a se entusiasmar em realizá-las.

  Levemos em consideração jogos como os MMORPGs: muitos deles pedem coisas simples, repetitivas e redundantes, como recolher um certo número de itens em um mapa com monstros. Você recolhe os itens, mata alguns monstros e ganha, com isso, mais pontos de experiência, que tornam seu personagem mais poderoso e permite que enfrente mais novos monstros em novos mapas, e, terminada cada tarefa, o jogo apresenta outra tarefa muitas vezes similar. Este modelo de jogo cíclico, bastante simples, possui milhões de adeptos por todo o mundo e tudo o que muda entre eles é a roupagem, a estética, a 'perfumaria', mas a essência é a mesma, burocrática.

  Nos jogos, importa menos a tarefa a ser feita do que o faz-de-contas, a fantasia. Por exemplo, eu nunca gostei muito de quebra-cabeças quando eu era criança, mas amava o jogo Tomb Raider, a despeito de ele ser 80% puzzles, 10% ação e 10% andar de um para outro. Conheço quem deteste ler, mas que sabe tudo sobre os universos ficcionais de certos jogos; quem não tenha grande pendor artístico, mas que gosta de se fingir bom no Cidade-Dorme (ou Máfia, depende do lugar); quem não goste de fazer contas, mas que não vê problemas em gastar horas montando uma ficha de Dungeons & Dragons.

 Lara Croft, a arqueóloga.

   Os jogos tornam interessantes, portanto, tarefas que outrora pareceriam ordinárias ou sem fundamento (chutar uma bola em uma rede sendo ajudado por aliados e atrapalhado por rivais) a partir do momento em que nos permitem participar de um novo universo, de uma narrativa com começo (receber as quests), meio (realizar as quests) e fim (receber a recompensa pela quest). Os jogos nos fazem agentes. Quando Jane McGonigal se viu vítima, encontrou em seu jogo uma saída para tornar sua vida mais sadia. Como com qualquer válvula de escape, os jogos podem deixar de ser saudáveis, também. Nem sempre os jogos são a escolha certa para uma aula, por exemplo. Mas, na medida certa, eles podem fazer a diferença entre o interesse e o desinteresse, entre o esforço e a procrastinação.

Um comentário:

  1. Muito legal o SuperBetter, rapaz. E tomei como ofensa pessoal chamar essa quebradora de estruturas e artefatos de arqueóloga!

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