O grupo “Interpretar e Aprender” surgiu como ideia nos corredores da Universidade de São Paulo por três estudantes de História interessados em integrar diversão e aprendizagem. Apaixonados tanto por narrativas fantásticas quanto pelo ato de ensinar, estes amigos decidiram criar um grupo cujo intuito seria trabalhar, de forma prazerosa, os conteúdos escolares - e não haveria melhor maneira de fazê-lo do que utilizando o RPG, ou Role Playing Game.

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Heróis e vilões

Um vilão, stritus senso é um habitante de uma vila. Narrativamente esperamos, no entanto, que eles sejam os antagonistas dos heróis. Heróis são seres humanos que superam esta condição por realizarem feitos, espera-se, que sejam humanamente impossíveis. Mas como é que se delimita o que é possível?


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Essa é uma pergunta pertinente, tão pertinente que cabe aqui uma pequena digressão. Veja, em 1974, o então campeão mundial dos pesos pesados de boxe, George Foreman, foi desafiado por Cassius Marcellus Clay Jr.. Clay tinha 32 anos, uma idade avançada para continuar na carreira de pugilista.
Em meio a um ambiente de revolta em relação aos direitos civis dos negros Cassius Marcellus Clay se negava a aceitar o domínio dos brancos em seu país natal, os EE.UU. (Estados Unidos da América). Para tanto, quando desafiou seu compatriota também negro, este representando o estatuto das coisas como eram, Clay não esquiva-se da batalha física e moral que começa ali.
A luta, como ficou conhecida graças ao livro de Norman Mailer, causou tamanha comoção entre os conterrâneos de Clay que teve de ocorrer fora do território Norte americano. Depois de muita discussão e muito desencontro decidiu-se que ela seria realizada no Zaire em 30 de outubro de 1974. Nesse momento Cassius Marcellus Clay Jr já era uma lenda entre os pugilistas, conhecido como Muhammad Ali depois de se converter ao islamismo, ele era, sem dúvida, o mais interessante pugilista até aquele momento. Mas seu oponente, George Foreman, era quase uma década mais jovem e alguns quilos mais forte que ele.
"Essa luta vai ser um massacre", diziam os comentaristas. E foi. Por oito rounds Foreman atacou sem piedade a lenda de Muhammad Ali. E chega a ser quase embaraçoso assistir à luta pois naquele ringue ocorre um massacre!



"Voe como uma borboleta, pique como uma abelha" era o lema de Ali enquanto treinava. Depois de oito rounds e incontáveis golpes, Muhammad Ali encerra essa batalha com apenas dois golpes contra Foreman. [Deixando o terceiro preparado, mas não soltando-o por misericórdia a um adversário que merece seu respeito.] Como ninguém previu isso? Como criamos o limite do possível e como alguns de nós insistem em extrapolá-lo?
Encontramos ai, enfim, um herói contemporâneo. Não porque ele superou a idade e o esforço físico, mas porque Muhammad Ali imbuiu a demanda de uma sociedade em uma luta. Não eram homens que se enfrentavam sobre aquele ringue, eram duas versões de mundo muito diversas entre si, e a esperada derrota nunca chegou. Pelo contrário, vemos que a partir desta luta chegaram novos ares, sentidos de renovação e esperança antes perdidos.
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O possível é um limite criado e imposto por nós a nós mesmos. Vilões e heróis costumam testá-lo, expandi-lo. O que diferencia um de outro então? A razão moral que guia um e outro. Enquanto o herói irá preservar paradigmas morais interessantes a esta sociedade o vilão irá propor outro [e possivelmente tentar destruir o anterior]. Não a toa temos deidades de panteões anteriores ao cristianismo incorporadas tanto como elementos celestiais (anjos) como temo-nas também incorporadas como senhores infernais (demônios) na eterna luta entre o bem e o mal dentro da mitologia cristã. Como um Deus pode se tornar um demônio? Se desconsiderarmos a discussão metafísica (por ser por demais extensa e por demais enviesada) temos de partir do pressuposto de que os homens acessam parcialidades da deidade e então criam representações para ela, essas representações, por serem criadas, tem dentro de si paradigmas relacionados ao tempo sociedade e cultura em que foram  criadas/descobertas; dai decorre a leitura de que Deuses podem tornar-se anacrônicos, desnecessários nas formas de representação em que foram "aprisionados".



Heróis e vilões na verdade se constroem a partir de seus pontos de vista e não a partir de sua atuação. O RPG como ferramenta de aprendizado pode trazer questões problemáticas como essa à uma nova luz, especialmente na escola. Porque a escola é a instituição, por excelência que deve imbuir na criança as estruturas linguísticas e conceitos teóricos que nos permite aprofundar em questões como: qual a diferença entre um herói e um vilão?
Dado que durante o jogo todos são protagonistas, a razão herói/vilão não nascerá a partir da mera oposição entre um e outro, ela surgirá através das escolhas e decisões assumidas em campanha, em narrativa. O que levanta a pergunta: Por que não interpelar narrativas através de nossas presenças nelas ao invés de simplesmente aceitarmos as narrativas como acontece com os livros? [Não me entendam mal, os livros são outra chave de acesso, com outras questões linguísticas a serem resolvidas.] Para uma criança ou um adolescente a atuação conjunta desses elementos (RPG e Literatura) parece ser mais efetiva do que o simples assistir de palestras nos moldes das escolas como conhecemos.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Witch Slap


Na última semana, durante uma aventura de RPG em que eu estava jogando, aconteceu o seguinte: durante uma discussão entre personagens, o personagem de um jogador, um 'ranger' maligno, desferiu um tapa no rosto da minha personagem, uma bruxa, diante de todos os NPCs relevantes da vila nórdica em que viviam. Minha personagem não havia sido feita para o combate, diferentemente dele, mas não era nem um pouco inofensiva. Protegida e atormentada por uma divindade menor dos ventos, a bruxa exigiu que a mão que tocou seu rosto lhe fosse entregue. Considerando a situação - e a possível ajuda que o tal ranger poderia proporcionar ao grupo em uma complicada situação iminente -, o 'espírito dos ventos' apenas ameaçou o personagem que desferiu o tapa. Chateada, a bruxa foi se lamentar pelo ocorrido longe da vila. Aborrecido, o ranger foi tentar descobrir uma forma de se proteger da tal divindade menor.

Depois da cena, eu fiquei me perguntando o porquê de eu não ter me utilizado de alguma maldição, o porquê de eu não ter intimidado o agressor (a habilidade mais relevante da personagem!), o porquê de eu ter interpretado um entristecimento ao invés de dar vazão à fúria (defeito descrito na ficha da personagem!). Imediatamente me ocorreu: "será que é porque estava interpretando uma mulher?". Será que, se eu estivesse interpretando um herói, eu teria tido a mesma reação? Ou mesmo se eu estivesse interpretando um não-combatente, ou um pacifista homem, teria tido a mesma reação? Esta pergunta ficou me incomodando por um tempo, ao mesmo passo que outra foi surgindo: será que ele teria desferido um tapa, ao invés de outro tipo de golpe, por conta do gênero das personagens?

Uma das coisas mais legais do RPG é a possibilidade de interpretar personagens, mas também é um exercício interessante para que nos conheçamos melhor - só assim podemos nos corrigir, afinal. Às vezes, acabamos agindo de formas impensadas e não temos em mente as implicações infelizes de tais ideias e o RPG nos fornece a capacidade de colocar algumas destas ações em perspectiva.



Assim, pensando agora, eu não poderia ter agido como agi. Deste modo, deixei de reagir como uma bruxa poderosa e furibunda, como seria mais coerente com a personagem havia criado, para dar lugar a uma donzela indefesa, marca da representação degradante das mulheres nos universos fantásticos, ou, pior, uma mulher incapaz, quando ela foi pensada como uma mulher hiper-competente, respeitada e temida. Minha "tristeza" acabou destruindo todo o trabalho que tive na criação e elaboração de uma personagem mulher que não fosse meramente redutível a seu gênero - mesmo sendo uma bruxa.


O RPG permite uma recriação da história e, com isso, por que diabos utilizá-lo para reforçar estereótipos, arquétipos e injustiças quando podemos fazer do mundo (de todos eles!) um lugar melhor? Verossimilhança é sempre interessante, mas, já que é impossível fugir do anacronismo, por menor que ele seja, será que não é mais legal se utilizar do anacronismo justamente para dar espaço a um mundo menos equivocado do que o nosso onde possível?

Talvez, historicamente, fizesse mais sentido que, ali, desmascarada em seu poder, os nórdicos deixassem de temer aquela forma de bruxaria e, com isso, se abrisse mais espaço para outras tradições religiosas. Talvez. Mas será que o que importa, no caso, é sempre a história? Finalmente, sugiro a leitura da dissertação de Mestrado de Eliane Godinho, Role Playing Game - Uma representação de gênero, que suscita ótimas reflexões não só sobre o tema, mas sobre o percurso do RPG.


terça-feira, 19 de novembro de 2013

Educação Financeira com RPG - O sistema

Como disse no post anterior, decidi fazer uma dinâmica extensa baseada no RPG com os alunos para que os conceitos fossem trabalhados, e principalmente para torná-los agentes criadores no processo educativo. Claro, um sistema completamente novo era necessário.


A dinâmica de turnos me pareceu bastante plausível. Cada turno seria uma espécie de desafio, ou uma escolha, que influenciaria nos turnos vindouros. O mais difícil foi bolar um nome; SimPolítica para o 8º e SimNegócios para o 9º.



No 8º, os alunos controlariam o poder executivo de uma cidade. Dividi cada sala em três grupos de dez alunos e cada grupo controlaria uma cidade diferente: uma pequena, uma média e uma grande. Como as cidades eram fictícias, pedi para compararem sempre à cidades conhecidas como São Paulo e Santos. Claro que os alunos não deveriam trabalhar com o grupo inteiro ao mesmo tempo. Separei-os em duplas dentro de seus grupos. Cada dupla controlaria uma das cinco secretarias (Educação, meio-ambiente, planejamento urbano, saúde e segurança pública), e uma dupla controlaria o gabinete do prefeito. Como uma ou outra secretaria poderia não estar relacionada ao problema vigente no turno, a cada turno uma delas seria inutilizada (à escolha dos próprios alunos), de modo que uma dupla sempre fosse o gabinete do prefeito.


Com a divisão entre secretarias, os alunos conseguem focar suas pesquisas e conseguem perceber na prática que o poder público está dividido em vários setores, em várias esferas, cada uma com suas responsabilidades e deveres. O gabinete do prefeito, por sua vez, tinha apenas a missão de auxiliar as outras secretarias durante as pesquisas e a criação de possíveis soluções para os desafios, e também distribuir a verba entre os vários projetos das secretarias. Essa verba não se tratava de valores, mas de porcentagem, trabalhando interdisciplinarmente com a matemática.


No 9º ano, os alunos controlariam o conselho diretivo de uma empresa. Deviam decidir sobre o futuro da empresa e tinham total liberdade de decisão (inclusive poderiam levá-la à falência). Os alunos se dividiram em grupos de cinco alunos.


Em ambos os casos, os projetos, ideias, soluções e escolhas deveriam pautar-se nos conceitos de sustentabilidade e responsabilidade social. A dinâmica desenrolou-se dessa maneira (lembrando que só tínhamos uma aula por semana):


1º - O turno iniciava-se em sala de aula: o desafio era proposto com uma pequena introdução do cenário pelo professor. (darei exemplos em outros posts). Nessa mesma aula, os alunos já reuniam-se para discutir quais ações deveriam ser tomadas durante a semana, e no caso do 8º ano, decidir qual secretaria ficaria de fora.

2º - Se preciso, mais uma aula para discussão com o professor e o resto do grupo. Um pré-relatório com a pesquisa do grupo era necessário.

3º - No final da semana, um relatório final justificando e explanando as escolhas do grupo deveria ser postado na plataforma que utilizamos no colégio.


4º - Na semana seguinte o professor comentava e passava o próximo desafio.

Para saber mais como foram as experiências, clique aqui e aqui.

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Educação Financeira com RPG?

Como os leitores mais assíduos do blog perceberam, ficamos um booom tempo longe. O Paulo já explicou de uma maneira bonita, mas a verdade é que trabalhávamos muito durante esse período.

Um dos meus novos desafios esse ano foi ministrar aulas de Educação Financeira. Após algumas pesquisas percebi que não poderia seguir os programas mais comuns. Em geral, a disciplina é ministrada para o ensino fundamental I, com alguns exemplos de programa para fundamental II e médio.

Grande parte dos programas tratam de economia doméstica e tentam convencer os alunos a guardar dinheiro. Geralmente com situações hipotéticas, as simulações nem sempre são próximas às vivenciadas pelas nossas crianças. A maioria ainda tenta desmistificar o dinheiro: ele serve para ser gasto! Apenas precisamos pensar melhor como gastá-lo. Esse objetivo é urgente no Brasil com o crescente poder de compra da população. Porém, com alunos de alta renda o método torna-se ineficaz e as situações hipotéticas muito longe de sua realidade.

Assim, a única opção era criar meus próprios objetivos, métodos e escolher os conteúdos que trabalharíamos com os 8ºs e 9ºs anos. Claro que minha formação em História não ajudaria a focar na parte matemática da coisa, não havia outra opção além de trilhar o caminho crítico e discutir alguns pontos sobre economia, e principalmente responsabilidade social e sustentabilidade.



Decidi, então, delimitar o foco dos estudos para o oitavo ano na realidade do país. Após um pouco de história sobre mercantilismo e capitalismo focamos nas obrigações das diversas instâncias de governo. Já havia me atentado à extrema dificuldade dos alunos de diferenciar os governos municipais, estaduais e federais. É muito fácil culpar a presidenta pelo transporte público de São Paulo quando na verdade o metrô é responsabilidade estadual e os ônibus cabem ao município. Descobrimos como o orçamento público é elaborado e aprendemos sobre os principais impostos pagos pela população.

No nono ano o espectro foi maior. Começamos com uma visita à BM&F/Bovespa e discutimos tópicos ligados à bolsa. A partir do ISE (Índice de Sustentabilidade Empresarial), da própria bolsa, partimos para discussões sobre sustentabilidade e responsabilidade social.

Em ambos os casos, o objetivo foi torná-los conscientes e críticos quanto às situações estudadas, assim como torná-los responsáveis pela manutenção do sistema ou sua mudança. Em ambos os casos decidi que o segundo semestre seria mais prático e dinâmico. Criei um simulador para cada série. Esse simulador seria bastante semelhante a um RPG convencional, com turnos, estímulos do professor e respostas dos alunos. 

É essa experiência, com seus altos e baixos, que gostaríamos de contar a vocês em posts vindouros. A experiência foi grande e ainda não terminou, mas já foi bem interessante.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

O correr da vida embrulha tudo

"Sempre achei que o paraíso fosse uma espécie de livraria"
Jorge Luiz Borges


O literato João Guimarães Rosa  costumava dizer que "o correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem"... Coragem. Pois perdemo-nos em nosso cotidiano e esquecemos quem somos. Esquecemos os quereres... os das histórias, aqueles das crianças e dos loucos.

Levou um tempo para entendermos como esse projeto funciona. E depois mais um tempo para entendermos como esse projeto atua. Depois ainda precisamos negociar com a vida. Agora, finalmente, chegamos em um ponto ótimo em que energias são gastas e produzidas e repostas. Mas a vida ainda exige-nos coragem.

Pois continuando o que estudamos, pensamos e propusemos em posts anteriores faço aqui um re-post do pessoal do Papo de homem. Abaixo está uma história sobre a primeira história em quadrinhos. E sobre o paraíso... Não dá para não se emocionar, é impossível não se apaixonar...

Preciso dizer que os quadrinhos, ultimamente andam me surpreendendo. São narrativas inovadoras muito ligadas em seu suporte, trabalhando-o como poucas outras mídias. Existem alguns web-comics na rede hoje em dia. O pessoal do Terapia, faz um dos melhores. E, deles, vem essa história abaixo.

Antes de Adão, Deus e o super-macaco, vale saber que os caras desenharam coisas como isso aqui, ó:


E agora... A primeira hq:

— Senhor?
— Pois não.
— Adão na linha nove.
— Pode passar.
— Só um minuto.
— Alô?
— Oi, Adão, tudo bom?
— Tudo, e o Senhor?
— Tudo em ordem. Diga.
— Eu liguei para conversar com o Senhor sobre meu novo projeto.
— Projeto?
— Sim. O senhor sabe que eu faço desenhos, certo?
— Desenhos?
— Isso. Na parede da minha caverna.
— Aqueles bonequinhos que você faz com carvão?
— Bem… Não são exatamente bonequinhos, mas tudo bem. Enfim, eu estava fazendo uns desenhos semana passada e tive uma ideia.
— Qual?
— Vou transformar aquilo em uma história. Ocupando a parede inteira da minha caverna.
— História?
— Isso. Com começo, meio e fim. E um personagem principal. Mas, para isso, eu preciso da ajuda do Senhor.
— Espere, eu ainda não entendi. Como um desenho vai contar uma história inteira?
— Não é um desenho. Serão vários. Um vai ser continuação do outro. Por exemplo, o primeiro desenho mostra meu personagem, não sei, indo até a caverna. O segundo desenho mostra ele entrando na caverna. E por aí vai…
— Ah, entendi.
— Bem, eu já tenho minha história toda planejada e comecei a desenhar. Mas não estava ficando bom. Alguma coisa estava faltando.
— E aí você ligou para Mim.
— Justamente. Eu preciso inventar a escrita.
— …
— Alô?
— Desculpe. Eu engasguei com o café. Você quer inventar o quê?
— A escrita. Os desenhos estão ficando ótimos… A Eva, no começo, não gostou de ver a parede da caverna toda desenhada, mas agora mudou de ideia. Ela tem até dado palpites sobre a história, sabe?
— Que bom.
— Mas sem a escrita, eu não estou conseguindo fazer. Estou empacado.
— Bem…
— Porque qualquer um consegue desenhar uma pessoa triste. Mas se puder escrever, eu consigo mostrar porque aquela pessoa está triste. Ou, melhor ainda, porque aquela pessoa está triste naquele momento. Vai ficar muito mais rico.
— Você tem pensado tudo nisso sozinho?
— Sim. Por quê?
— Nada. Bem, parece que está ficando muito bom. Mas eu não posso autorizar a escrita agora.
— Mas é só um alfabeto. Quantas letras o Senhor imagina que um alfabeto teria? Umas oito? Dez?
— Não, muito mais. A última vez que dei uma olhada nisso, o projeto já tinha mais de vinte letras. E ainda não está pronto.
— Eu me viro com essas vinte. Que tal?
— Não, Adão, nem pensar.
— É que sem a escrita, minha história vai ficar fraca. Igual a dos macacos.
— Os macacos fizeram uma história com desenhos também?
— Sim. Eles ficaram sabendo que eu estava fazendo uma história, correram e inventaram a história deles. Mas não ficou boa, não.
— Por quê?
— Bom, eles criaram um personagem… É um macaco que consegue fazer um monte de coisas diferentes. Ele voa e é mais forte que os outros macacos. É estranho, ele tem uma folha de palmeira nas costas. Nenhum macaco usa uma folha de palmeira nas costas.
— Nas costas?
— Sim. Fica presa no pescoço. Eles dizem que é o Super Macaco, encarregado de proteger o Paraíso.
— Mas defender o Paraíso de quê?
— De mim.
— Como assim?
— O tal do Super Macaco é o herói, e eu sempre sou o vilão. As histórias que eu vi sempre começam comigo tentando roubar alguma coisa do Paraíso. Aí o macaco com a folha de palmeira nas costas aparece e eu apanho.
— Não parece ser muito interessante.
— Concordo. Acho que é por isso que eles ficam tentando inventar coisas novas. Para o Senhor ter uma ideia, eles já fizeram três histórias mostrando a origem do tal do Super Macaco. E, em todas elas, têm algo diferente.
— Como assim?
— Na primeira, ele era um macaco que ganhou poderes depois de nadar num lago. Aí, fizeram contando que na verdade os seus poderes não vem do lago, mas sim do fato de que, quando estava nadando, foi mordido por um peixe poderoso.
— Peixe?
— Isso. Depois, lançaram outra história, mostrando que o Super Macaco veio de outro planeta depois que os pais dele foram assassinados e, chegando ao Paraíso, descobriu que seus poderes aparecem quando ele fica nervoso, graças a uma armadura que ele fez usando um tronco de carvalho.
— Eu não entendi nada.
— Eu também não. Mas vendeu bem.
— Vendeu?
— Isso. Eles desenham as histórias do tal do Super Macaco em folhas de bananeira e ficam vendendo para os outros animais.
— Vendendo?
— Vendendo. Todo dia eles têm uma história nova. Eles até bolaram um nome para essas folhas de bananeira. Chama Folhetim de Bananeira.
— Entendi. Bem, você Me ligou para pedir que a escrita seja inventada e sua história fique melhor.
— Isso.
— E, assim, você vai vender mais histórias que os macacos. E vai ficar rico.
— Não, não é nada disso.
— Então, por que você está pedindo para que eu invente a escrita? Não é para competir com os macacos?
— Não, Senhor. Posso ser sincero?
— Claro.
— Eu quero apenas contar a melhor história possível. Eu não estou preocupado com o tal do Super Macaco. Se os outros animais gostam… Bem, isso é com eles. Eu só quero trabalhar nessa história que criei para que ela fique o melhor possível.
— Adão, é difícil ser onisciente desse jeito. Você é imprevisível demais.
— Bem…
— Você Me dá um minuto?
— Claro.
— Voltei.
— Já?
— Sim. Fui até sua caverna e olhei os desenhos. Realmente, são muito bons.
— Obrigado.
— E gostei daquilo que você fez, de desenhar uma moldura ao redor de cada desenho. Ficam parecendo pequenos quadros pendurados na parede da caverna.
— A Eva disse a mesma coisa sobre esses quadrinhos que eu fiz. Disse que quando a história estiver pronta, vai parecer uma história em quadrinhos na parede.
— Eu gostei bastante.
— Obrigado.
— Adão, é o seguinte. Eu não posso autorizar a invenção da escrita ainda.
— Mesmo? Nem algumas vogais?
— Não. Mas Eu tenho uma ideia.
— Sua ideia não envolve anjos com espadas de fogo descendo até aqui, certo?
— Oi? De onde você tirou isso?
— Bom, é que isso sempre acontece quando eu tento algo novo.
— Adão, quer ouvir minha ideia?
— Sim.
— Você me conta o que quer que seus personagens pensem ou falem, e Eu escrevo. Assim, sua história será escrita. Mas a escrita ainda não será inventada.
— Como assim?
— Você desenha e Eu escrevo. Que tal?
— Perfeito!
— Mas com uma condição. Nós não poderemos usar nossos próprios nomes. Porque Eu ou você não podemos assinar uma história feita em quadrinhos numa caverna. Isso pode me dar uma dor de cabeça enorme daqui a alguns séculos. Você aceita?
— Claro! Mas quais nomes nós usaremos?
— Depois vemos isso. Vamos primeiro escrever a história.
— Certo!
Assim, Adão passou noites e mais noites desenhando. E, um dia, ligou para Deus e contou que sua história estava terminada. Contou o que era cada quadro e Deus se prontificou a escrever tudo. Antes de descer até a Terra, ligou para o departamento de linguística e pediu ao anjo encarregado que criasse duas palavras totalmente novas, usando símbolos aleatórios de línguas diferentes.
Depois de receber a resposta do anjo, Deus desceu até a caverna e passou a noite escrevendo os diálogos e narrações, seguindo as instruções de Adão. Pouco antes do amanhecer, o trabalho estava quase terminado, faltava apenas assinar. Desta forma, Deus escreveu, logo abaixo do último desenho:
“Uma história em quadrinhos na parede, feita por Will e Eisner”.
Releu a história inteira. Estava boa. Estava muito boa.
Subiu de volta aos céus e convocou dez anjos, encarregando-os de uma missão: cada um deles iria de madrugada até a caverna de Adão e copiaria a história em folhas de bananeira. E, quando tivessem folhas de bananeiras suficientes, entregariam uma cópia para cada animal do Paraíso. Um dos anjos chamou sua atenção.
— Mas nós somos apenas dez. Serão muitas cópias.
— Por isso que é importante que cada um de vocês avise outro anjo. Quanto mais anjos ajudarem, mais longe essa história pode ir.
— Mas, Senhor, por que logo essa história?
— Porque ela é boa. Porque ela foi feita com amor.
— Entendi.
— E não se esqueça de uma coisa: um dia, o Paraíso vai desaparecer. Eu sei disso. Então, é importante que todos já entendam uma coisa.
— O quê?
— Que o Paraíso nada mais é que uma história boa. Sempre que uma pessoa se apaixonar por uma história, ela terá descoberto um Paraíso só dela.
— Entendi. Para mim, então, o Paraíso seria aquela história que o Super Macaco precisa lidar com o retorno do verdadeiro Super Macaco.
— Oi?
— O Senhor não viu essa? O Super Macaco descobre que na verdade é um clone, e precisa…
— Isso não importa agora, Lúcifer. Vá fazer o que eu pedi.
— Sim, Senhor.