O grupo “Interpretar e Aprender” surgiu como ideia nos corredores da Universidade de São Paulo por três estudantes de História interessados em integrar diversão e aprendizagem. Apaixonados tanto por narrativas fantásticas quanto pelo ato de ensinar, estes amigos decidiram criar um grupo cujo intuito seria trabalhar, de forma prazerosa, os conteúdos escolares - e não haveria melhor maneira de fazê-lo do que utilizando o RPG, ou Role Playing Game.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Fantasia e Preconceitos (Parte 2)

Elfos, anões, humanos, hobbits (ou hobbitses, como diria o *spoiler* finado Gollum). Eis um line-up básico dos grupos raciais "do bem" encontrados no Senhor dos Anéis, traduzido de forma similar no Dungeon & Dragons e em boa parte de seus derivados. O D&D é, sem muita dúvida, o jogo de RPG mais influente da história. Suas reinterpretações da mitologia de Tolkien são tão relevantes que, tanto quanto sua fonte de inspiração, influenciaram profundamente não só a literatura fantástica mas todas as vertentes da fantasia ocidental.



Raças, né? Pois bem. Em muitas mitologias fantásticas, deuses, entidades criadoras ou qualquer coisa que o valha criaram diferentemente as raças autoconscientes e por conta disso, cada grupo possui características que os distinguem intrinsecamente. Por exemplo: anões gostam de usar barbas longas e elfos costumam ser altivos e poéticos. Faz parte de ser anão gostar de uma longa barba, tanto quanto faria parte de ser um elfo ser ágil e gracioso. Humanos são, nestes cenários, o meio termo entre ambos os grupos, nem tão fortes quanto anões, nem tão frágeis quanto elfos; nem tão ágeis quanto os orelhudos, nem tão lentos quanto os baixinhos. De um lado, o pragmatismo materialista, do outro, o esoterismo transcendente. Pense assim: se você pensar em um anão ágil, que fala com as árvores, prefere arco e flecha à machados, não usa barba e mantém-se esguio, ele não seria um pária, uma exceção? E em um cenário fantástico onde todos os anões são assim e os elfos seriam o contrário? Não seria estranho?

A literatura fantástica é composta por seus próprios tropos, suas próprias convenções. E a influência de D&D e de Tolkien são fortes demais para se ignorar. E os universos fantásticos herdaram a variação racial de Tolkien, com algumas características mais marcantes que outras. Uma das características mais marcantes é a da essencialização das diferenças, a transcendentalidade cultural. Os anões são como são porque são anões. Os humanos são como são por serem humanos. Orcs são maus por serem orcs.



Esta forma de pensamento casa com a própria origem de algumas destas raças: Tolkien, D&D e inúmeros de outros criadores de universos fantásticos dentro ou fora do RPG se inspiraram em mitologias arcaicas - grega, nórdica, cristã, romana, bantu, maia, tupinambá ou misturas de mais de uma delas. Nestes universos mitológicos, a realidade é povoada por criaturas não-humanas e muitas destas são pensadas a partir de suas diferenças para com os seres humanos, a partir de suas características mais estereotípicas. Quando as civilizações humanas começaram a entrar em contato entre si, também era a partir da marcação das diferenças entre si e o Outro que elas cunhavam sua identidade - atenienses amantes da liberdade e de sua forma de democracia versus espartanos guerreiros. Não mudamos tanto assim e continuamos a criar e nos utilizar de estereótipos (paulistas workaholics versus cariocas malandros?); se hoje racismo é crime, por muito tempo não só não foi como era uma forma 'científica' de se dividir a humanidade. Neste sentido, a utilização de estereótipos como forma de se categorizar e gerar identidades ("somos diferentes dos demais porque gostamos [mais] de uma atividade específica" ou "somos diferentes porque gostamos de um estilo musical comum") acaba não só sendo problemática, mas ela pode servir a uma agenda racista, preconceituosa, homofóbica, machista, entre outras formas de agir desagradáveis.



Isso não significa que eu não goste de meus jogos de RPG com elfos ou anões ou que eu não utilize estereótipos como ferramentas narrativas. Contudo, temos que ter cuidado e ter consciência de seus limites para que não o utilizemos de forma a ensinar ou a propagar ideias desagradáveis - afinal, ideias moldam nossa prática, não? Já há algum tempo, diversos sistemas vêm desconstruindo os estereótipos raciais tradicionais dos universos de fantasia, mas muitos deles apenas substituíram os velhos estereótipos por outros. A noção de raça, nos RPGs, deve, em minha opinião, ser diluída em uma noção de cultura, etnia, etc. Os bônus raciais não poderiam significar nada além de algumas vantagens ou desvantagens biológicas, enquanto a cultura e a etnia, estas sim poderiam e deveriam pautar mais o comportamento e a personalidade das personagens (sem determinismo, claro). Ao meu ver, nestes termos, um elfo não teria que ser um amante das árvores ou elegante a não ser que o lugar em que ele cresceu possibilitasse esta perspectiva; um elfo órfão crescido entre anões seria bem diferente disso!



Portanto, quando você for criar um personagem ou uma aventura em seu próximo jogo, que tal dar uma pensada em como chacoalhar o status quo fantástico?

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Tecnologia e inovação na escola

A educação precisa mudar. Disso ninguém discorda. O discurso é simples: os professores precisam utilizar novas tecnologias. As tecnologias da educação nunca pararam de aparecer. A palmatória foi, em algum momento, uma nova tecnologia! O problema não é o surgimento de novas tecnologias, e sim o uso que os professores e alunos são capazes de fazer dela. Incluo os alunos pois nós não acreditamos que a educação se dá apartada da produção de conhecimento e re-significação do mundo pelo educando.

A internet está revolucionando o processo de ensino-aprendizagem. Diversos projetos se destacam. Entre eles a produção de aplicativos para smartphones e tablets. O 9º ano do colégio I. L. Peretz soube usar muito bem essa tecnologia. Em uma pesquisa envolvendo diversas disciplinas, criaram um aplicativo sobre a ditadura militar brasileira. 



Mesmo com a dificuldade de encontrar documentos históricos sobre o período, a qualidade das informações é surpreendente. Para quem quiser baixar o aplicativo e experimentar os jogos criados pelos alunos, assim como conhecer a história de alguns desaparecidos, basta clicar aqui.

Todavia, toda inovação, ainda hoje, sofre resistências e até obstáculos. O lúdico está, sim, cada vez mais aceito por professores e gestores que sempre procuram por inovação, mas o preconceito ainda existe. Mesmo o professor Rodrigo Ayres, diversas vezes homenageado e premiado em competições internacionais, sofre com o preconceito. Seu projeto de "Gamificação" da educação é a vanguarda, mas o professor ainda sente a dificuldade de encontrar apoiadores para realizá-lo.

Mas nem só de eletrônicos vive a educação. O RPG é exatamente isso: uma (nem tão) nova tecnologia. Ele não é a solução para a educação que temos hoje: as pessoas são. Se não capacitarmos os educadores, como já nos alertou Matheus Vieira, os livros de RPG terão o mesmo uso das subutilizadas lousas eletrônicas (que são interessantíssimas, concordamos, mas é raro quem consiga usá-las com eficiência). 

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

RPG em Educação Financeira - SimPolítica

Continuando a nossa experiência, contarei um pouco sobre o 8º ano. Devo dizer que essas turmas eram bastante agitadas, mas também muito participativas e abertas a novas experiências. No fim das contas, isso facilitou bastante.

Como citado no post anterior, o foco foi o orçamento público em suas diferentes esferas.
O primeiro desafio foi um tema muito comum, mas que causa bastante confusão na cabeça das crianças: o transporte público. É um tema sempre discutido nas escolas mas nem sempre de uma forma profunda, e principalmente fora do escopo político atual de cada cidade. Após algumas discussões em classe, ficou claro que cada esfera de governo tem suas obrigações e nem todas os problemas são simples de resolver. Os projetos acabaram por ser bastante básicos e poucos detalhes sairam do senso comum. Entre os melhores há a ideia de um grupo de inserir o ciclismo nas aulas de educação física na educação pública. Claro que há dificuldades como as próprias bicicletas, mas a criatividade do grupo foi excelente pois visa a solução do problema de forma sustentável e permite o desenvolvimento social de áreas que, geralmente, não tem oportunidades como tal. Muitos grupos, entretanto, tiveram posturas extremamente totalitárias como obrigar as pessoas a passar álcool gel ao andar de ônibus para diminuir a transmissão de vírus e bactérias e armar os motoristas de ônibus para combater a violência urbana. O gancho, na verdade, foi ótimo, pois estávamos estudando os regimes absolutistas totalitários europeus em História e eles perceberam que o Estado tem um poder gigantesco sobre nossas vidas.
Esse primeiro turno, justamente pela novidade, não foi tão complexo e os relatórios não estavam escritos como eu imaginava que seriam. Ao longo do tempo esse aspecto melhorou bastante, alguns grupos fizeram relatórios de quatro, cinco páginas.

O segundo turno foi polêmico: o uso de substâncias ilícitas. O tema foi proposto pela coordenação da escola em um movimento de discussão para a prevenção do uso de drogas. Em todas as séries o tema foi tratado em algum momento, de alguma maneira. Demorei-me mais nesse turno devido às diversas dúvidas dos alunos e discussões sobre a postura do poder público frente às adversidades: é um problema de segurança ou saúde pública?
Apenas um dos seis grupos preferiu a repressão à prevenção. As propostas na área de educação como palestras sistemáticas eram as mais simples e coerentes, e a criatividade não foi muito longe nesse turno, apesar de muita discussão em sala.

O descarte do lixo foi o último tema. A aula de sensibilização não foi longa para que os grupos logo começassem a trabalhar. Orientei, dessa vez, a pesquisa de projetos de descarte em cidades diversas pelo mundo. O momento não era propício. Diversos outros projetos, provas, feriados e um estudo do meio distanciaram demais a aula em que o desafio foi proposto da aula em que deveriam entregar os relatórios. Os poucos relatórios entregues não tinham nada inovador. Após esse turno o jogo foi interrompido.

Alguns pontos, entretanto, são interessantes de ressaltar, e principalmente alguns aprendizados para o professor:

Esse 8ºano não tinha maturidade o suficiente para nos surpreender nesse tipo de projeto, mesmo assim, as relações estabelecidas entre conteúdos e a severidade do relatório, assim como as pesquisas que fizeram para a atividade desenvolveram-se muito ao longo do semestre.

Os alunos esquecem absolutamente tudo nas férias. No ano anterior, um grupo havia criado uma solução muito inovadora para a lotação do metrô de São Paulo. Um sistema de sensores de luz na porta de cada vagão para a contagem das pessoas e a informação de qual vagão estava mais vazio (ou menos cheio, dependendo do horário) à população na plataforma. Mesmo produzindo um protótipo, esse ano os alunos nem citaram tal projeto.

Ao tornar-se agentes e criadores do conhecimento, alguns pontos bastante complexos são muito melhor compreendidos. As secretarias, por exemplo, no primeiro turno, invadiam uma a esfera de ocupação da outra, o que ocorreu bem menos nos turnos seguintes

A dinâmica em grupo, sempre complexa, não foi um problema mesmo com um grupo tão grande.

Para conhecer o trabalho com o 9º ano, clique aqui