A
maneira como uma história se constrói - seja ela oral ou escrita, sacra ou
profana, erudita ou vernácula, psicológica ou factual - deve ter por base
tornar o outro, eu. Aproximar um ser humano (autor ou personagem) a todos os
seus leitores. Talvez por isso possamos afirmar que: a narrativa é um exercício da potência humana.
Uma
história nunca é simplesmente serva de si mesma, sempre convergindo a um
panorama maior, um problema constatado pelo autor e trabalhado por suas
personagens. Mas não só em literatura que a narrativa interfere em nossas
vidas. A narrativa não é uma ciência literária, ela é cotidiana. Nossas vidas
são, em ultima análise, narrativas construídas por cada indivíduo.
O
RPG parece condensar o outro no eu, o alter
no ego. Interessante que sempre um
está cônscio do outro, o personagem se sabe personagem e o jogador se entende
apartado daquele mundo que habita apenas enquanto imaginação. É por isso que
muitos jogadores especializam-se em dominar sistemas para com as regras dadas,
em “roubar” toda vantagem que o narrador lhe permitir tomar para si. Talvez por
isso todos os bons mestres-de-mesa que conheço se apegam muitopoucoquasenada ao sistema, utilizando-o apenas para contar uma
história. Esses mestres tem uma
história para contar e, ainda assim, não se apegam a ela ao narrar uma
campanha, dando assim aos jogadores a chance de interferir e modificá-la
profundamente. O pessoal do Vila do RPG, parece se interessar em dividir dicas
sobre essas possibilidades.
O
mundo deve mudar a partir das ações dos jogadores. É nesse ponto que o RPG
difere de qualquer outra narrativa que não seja a da própria vida: toda
história contada tem em si um ponto, um argumento [talvez até uma moral] para
alcançar e, para isso, ela deve passar por alguns caminhos pré-determinados
por seu autor. Todas menos as histórias contadas em um jogo de RPG. Os
jogadores sempre podem escolher não se relacionar diretamente com a história
que o mestre quer contar. O grupo [unido ou não] pode escolher simplesmente
fazer outra coisa. É ai que surge aquilo que diferencia um bom narrador de um outro que
ainda tem um caminho a seguir.
O
bom contador de historias entende que toda ação atua e modifica o mundo. Sendo
assim, independentemente de os jogadores relacionarem-se ou não com aqueles
eventos, os caminhos assumidos pelo grupo receberão a influência dos fatos da história que o narrador pretendia contar. Em outras palavras: a história original a ser contada deve então tornar-se pano de fundo
para as ações dos jogadores que em algum momento irão
interagir com os eventos ou com a cadeia de eventos originada a partir
deles.
O
RPG é a vida [cheia de liberdades e consequências], mas por habitar nossas
imaginações e não nossos cotidianos permite às personagens colocarem-se em
maiores riscos ou não sem maiores pesos nas consequências assumidas. Este blog vem, a cerca de um mês, discutindo o ato de
aprender a partir de suportes inesperados. O Thiago falando de suas
experiências e dos caminhos possíveis por ele pensados/experimentados; o Daniel falando de cognição e dos
caminhos educativos entre jogos e aulas; e eu comentando sobre as narrativas
diárias e ideais, da noção de história que é construída diariamente por cada um. Porém nosso interesse, enquanto grupo, é maior em desnudar a linguagem que as narrativas diárias que construímos e das histórias [e jogos que nos propomos a contar/jogar]
para aqueles que com elas se relacionam.
Ainda
nessa semana, em uma conversa sobre as experiências proporcionadas pelo Interpretar
e aprender, um crítico amigo me inquiriu: “Mas vocês promovem uma seção de
discussão sobre os conteúdos trabalhados? Desvelando mesmo essas camadas de ‘ludicidade’
que aproximam o aluno dos conteúdos”. De pronto eu respondi simplesmente que não. A seguir comecei a pensar a respeito: será mesmo necessária essa postura tão
explicita? Até onde eu sei a graça da literatura, cientifica e ficcional, por
vezes está na dubiedade de não se saber exatamente onde estão os referenciais [teóricos, éticos e lingüisticos] assumidos
pelo autor. Aquele gostinho de quero mais que te faz ler e reler aquele texto,
parágrafo, palavra para, a cada nova leitura, descobrir mais e mais possibilidades de interpretação. Ora se o professor vem trabalhando os conteúdos que nós aplicamos em
nossa aula-jogo e se ele continuará a aplicar conteúdos que se relacionam com
nossas propostas, porque então fazer uma rodada de discussão para "assentar o
conhecimento" como esperamos que ele seja entendido? Por que não deixá-lo enquanto semente que pode ou não se
desdobrar em curiosidade?
A
linguagem cerceia e domina o mundo. Nossas narrativas imaginárias dão conta de
mostrar para o aluno que ele esta preso a linguagem narrativa tanto
quanto ele se permite prender. Por isso penso que não é interessante uma
rodada de discussão garantindo determinada recepção de conteúdos. Transformemos
a escola em um espaço de domínio de determinados conteúdos e de expansão de
outros. Tornemo-nos também problematizadores daquilo que acreditamos enquanto
projeto deixando espaço para que o outro, o alter, o aluno também construir
noções e definições que, mais tarde, irão reverberar no mundo e,
consequentemente, em nós mesmos. Não é essa a escola que queremos?
Nenhum comentário:
Postar um comentário