O grupo “Interpretar e Aprender” surgiu como ideia nos corredores da Universidade de São Paulo por três estudantes de História interessados em integrar diversão e aprendizagem. Apaixonados tanto por narrativas fantásticas quanto pelo ato de ensinar, estes amigos decidiram criar um grupo cujo intuito seria trabalhar, de forma prazerosa, os conteúdos escolares - e não haveria melhor maneira de fazê-lo do que utilizando o RPG, ou Role Playing Game.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Narrar a(a) liberdade


A maneira como uma história se constrói - seja ela oral ou escrita, sacra ou profana, erudita ou vernácula, psicológica ou factual - deve ter por base tornar o outro, eu. Aproximar um ser humano (autor ou personagem) a todos os seus leitores. Talvez por isso possamos afirmar que: a narrativa é um exercício da potência humana.

Uma história nunca é simplesmente serva de si mesma, sempre convergindo a um panorama maior, um problema constatado pelo autor e trabalhado por suas personagens. Mas não só em literatura que a narrativa interfere em nossas vidas. A narrativa não é uma ciência literária, ela é cotidiana. Nossas vidas são, em ultima análise, narrativas construídas por cada indivíduo.

O RPG parece condensar o outro no eu, o alter no ego. Interessante que sempre um está cônscio do outro, o personagem se sabe personagem e o jogador se entende apartado daquele mundo que habita apenas enquanto imaginação. É por isso que muitos jogadores especializam-se em dominar sistemas para com as regras dadas, em “roubar” toda vantagem que o narrador lhe permitir tomar para si. Talvez por isso todos os bons mestres-de-mesa que conheço se apegam muitopoucoquasenada ao sistema, utilizando-o apenas para contar uma história. Esses mestres tem uma história para contar e, ainda assim, não se apegam a ela ao narrar uma campanha, dando assim aos jogadores a chance de interferir e modificá-la profundamente. O pessoal do Vila do RPG, parece se interessar em dividir dicas sobre essas possibilidades.

O mundo deve mudar a partir das ações dos jogadores. É nesse ponto que o RPG difere de qualquer outra narrativa que não seja a da própria vida: toda história contada tem em si um ponto, um argumento [talvez até uma moral] para alcançar e, para isso, ela deve passar por alguns caminhos pré-determinados por seu autor. Todas menos as histórias contadas em um jogo de RPG. Os jogadores sempre podem escolher não se relacionar diretamente com a história que o mestre quer contar. O grupo [unido ou não] pode escolher simplesmente fazer outra coisa. É ai que surge aquilo que diferencia um bom narrador de um outro que ainda tem um caminho a seguir.

O bom contador de historias entende que toda ação atua e modifica o mundo. Sendo assim, independentemente de os jogadores relacionarem-se ou não com aqueles eventos, os caminhos assumidos pelo grupo receberão a influência dos fatos da história que o narrador pretendia contar. Em outras palavras: a história original a ser contada deve então tornar-se pano de fundo para as ações dos jogadores que em algum momento irão interagir com os eventos ou com a cadeia de eventos originada a partir deles. 

O RPG é a vida [cheia de liberdades e consequências], mas por habitar nossas imaginações e não nossos cotidianos permite às personagens colocarem-se em maiores riscos ou não sem maiores pesos nas consequências assumidas. Este blog vem, a cerca de um mês, discutindo o ato de aprender a partir de suportes inesperados. O Thiago falando de suas experiências e dos caminhos possíveis por ele pensados/experimentados; o Daniel falando de cognição e dos caminhos educativos entre jogos e aulas; e eu comentando sobre as narrativas diárias e ideais, da noção de história que é construída diariamente por cada um. Porém nosso interesse, enquanto grupo, é maior em desnudar a linguagem que as narrativas diárias que construímos e das histórias [e jogos que nos propomos a contar/jogar] para aqueles que com elas se relacionam.

Ainda nessa semana, em uma conversa sobre as experiências proporcionadas pelo Interpretar e aprender, um crítico amigo me inquiriu: “Mas vocês promovem uma seção de discussão sobre os conteúdos trabalhados? Desvelando mesmo essas camadas de ‘ludicidade’ que aproximam o aluno dos conteúdos”. De pronto eu respondi simplesmente que não. A seguir comecei a pensar a respeito: será mesmo necessária essa postura tão explicita? Até onde eu sei a graça da literatura, cientifica e ficcional, por vezes está na dubiedade de não se saber exatamente onde estão os referenciais [teóricos, éticos e lingüisticos] assumidos pelo autor. Aquele gostinho de quero mais que te faz ler e reler aquele texto, parágrafo, palavra para, a cada nova leitura, descobrir mais e mais possibilidades de interpretação. Ora se o professor vem trabalhando os conteúdos que nós aplicamos em nossa aula-jogo e se ele continuará a aplicar conteúdos que se relacionam com nossas propostas, porque então fazer uma rodada de discussão para "assentar o conhecimento" como esperamos que ele seja entendido? Por que não deixá-lo enquanto semente que pode ou não se desdobrar em curiosidade?

A linguagem cerceia e domina o mundo. Nossas narrativas imaginárias dão conta de mostrar para o aluno que ele esta preso a linguagem narrativa tanto quanto ele se permite prender. Por isso penso que não é interessante uma rodada de discussão garantindo determinada recepção de conteúdos. Transformemos a escola em um espaço de domínio de determinados conteúdos e de expansão de outros. Tornemo-nos também problematizadores daquilo que acreditamos enquanto projeto deixando espaço para que o outro, o alter, o aluno também construir noções e definições que, mais tarde, irão reverberar no mundo e, consequentemente, em nós mesmos. Não é essa a escola que queremos?

Nenhum comentário:

Postar um comentário