O grupo “Interpretar e Aprender” surgiu como ideia nos corredores da Universidade de São Paulo por três estudantes de História interessados em integrar diversão e aprendizagem. Apaixonados tanto por narrativas fantásticas quanto pelo ato de ensinar, estes amigos decidiram criar um grupo cujo intuito seria trabalhar, de forma prazerosa, os conteúdos escolares - e não haveria melhor maneira de fazê-lo do que utilizando o RPG, ou Role Playing Game.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Sobre criação de sistemas: FATE e Danquesystem

Criando Transformando um sistema próprio

Há alguns anos, na cinzenta São Paulo, quando eu comecei a criar um cenário para mestrar aventuras de RPG, pensei comigo: por que não criar também um sistema de RPG? Eu fiquei muito animado, porque já tinha uma ideia em mente: depois de anos jogando Storyteller, por influência de um outro sistema, eu decidi que queria deixar o jogo mais dinâmico e mudei um pouco a forma como ele funcionava. Esta mudança serviria de base para o meu novo sistema.

[nosferatu1.jpg]Para quem não conhece, para se fazer um teste no Storyteller, o jogador joga um número de dados de 10 faces (d10) igual à soma entre um de seus atributos e uma de suas perícias e as compara a uma dificuldade. Por exemplo, se o Brujah Alejandro tivesse força 5 e a disciplina potência 5, seriam dez dados rolados para calcular uma porrada na cara do Tremere prepotente. Por mais legal que fosse ver aquele monte de dados rolando, eu preferi resumir isso em somar o atributo, a perícia e o resultado do dado e comparar tudo isso a uma dificuldade. Esta ideia não era exatamente nova, eu a havia usado em um outro sistema similar e acabei trazendo-a para o Storyteller.
Então, eu já tinha a mecânica principal do sistema na cabeça: atributo + perícia + dado vs. dificuldade. Ótimo. Só faltava o resto, por exemplo, decidir que atributos e que perícias utilizar.




Esqueleto de um sistema

Depois de ter visto um TED muito bacana sobre uma jogadora de RPG que superou a depressão criando uma espécie de sistema de RPG para gerir sua própria vida (nós escrevemos sobre ela aqui), eu quis homenageá-la usando como atributos as quatro áreas sob as quais ela havia dividido a experiência humana: Física, Emocional, Mental e Social. Curiosamente, estas áreas se parecem com os tipos de atributos do próprio sistema Storyteller, contando apenas com a adição desta dimensão emocional ao jogo (que até está contemplada no Storyteller, mas de outra forma).

Para as Perícias, eu havia feito algumas pesquisas e achei alguns sistemas muito interessantes que, ao invés de serem minuciosos e detalhistas, eram mais abstratos e abertos. Para citar dois exemplos: no GURPS, um personagem possui uma Perícia para cada arma que ele sabe manejar, enquanto o Unisystem possuía apenas uma divisão entre armas brancas, armas de fogo e luta desarmada.

Um dos sistemas que pesquisei foi o FATE, um sistema premiado e cheio de fãs para o qual, à época, eu nem dei muita atenção. Me deparei então com um outro sisteminha, bem simples, que, salvo engano, era singelamente chamado de Sistema D6. Nele, os jogadores não possuíam divisão entre atributos e perícias, mas sim classes tradicionais como Ladrão, Guerreiro, Mago, Ranger, Paladino, Clérigo, etc. Ao invés de uma lista com cada competência do personagem, os personagens possuíam arquétipos e consideravam se este arquétipo combinava com a atividade que queriam realizar. Por exemplo, um personagem com Ladrão 2 e Guerreiro 1 teria mais dificuldade em enfrentar um inimigo em combate do que em abrir uma fechadura.
Este 'feeling' abstrato me interessou e eu pensei em usar exatamente as classes clássicas (hehe) como referência para a criação das Perícias, mas não queria usar os nomes destas classes, mas sim, recaracterizá-las como capacidades. Deste modo, criei primeiro as perícias Combate (G
uerreiro), Ladinagem (Ladrão) e Sabedoria (Mago) e depois, Sobrevivência (Ranger) e Intriga (Nobres e bardos). Depois de muito testar o sistema, senti necessidade ainda de criar as Perícias Atletismo (Acrobatas, esportistas e aventureiros em geral) e Ofícios (Ferreiros, Trabalhadores, Mineradores).

Com isso, estava criado o pilar do sistema que chamei, narcisisticamente, de Danquesystem.

O que é melhor: ser indestrutível por ser rígido como os ossos de Wolverine ou ser indestrutível por ser maleável como o Sr. Fantástico?

Algo que tinha me chamado a atenção quando eu havia lido sobre o FATE era a liberdade que ele dava para que o jogador influenciasse na história e a flexibilidade na criação das características de seus personagens (à época, eu não havia pego o FATE Core para ler [aliás, ele está disponível totalmente de graça, ainda que em inglês <ou pago, caso seu coração queira> aqui]). Então, quando eu criei meu sistema, eu quis incentivar que os jogadores criassem suas próprias Qualidades e Defeitos particulares e que elas tivessem um pouco da incrível capacidade de criar personagens únicos que o FATE tem.

Com o tempo, o desenvolvimento do sistema e com as necessidades que as experiências que eu tive com ele, de um sistema mais aberto e flexível, meu Danquesystem passou a ir adotando cada vez mais elementos de jogos mais rígidos como Gurps e D&D. Minhas Qualidades e Defeitos passaram a pertencer a uma lista, eu tentei deixar o jogo o mais rígido possível para levantar a menor quantidade de dúvidas, incertezas e imprecisões que eu poderia. Com o tempo, o sistema todo foi se aproximando mais destes sistemas de emulação (GURPS, D&D e até mesmo Storyteller) do que de sistemas mais abstratos e interpretativos (como o FATE e o Castelo Falkenstein).

Faz aproximadamente dois anos que tenho usado meu sistema desta forma... Até que, há algum tempo, por conta de um jogo de tabuleiro que eu vinha desenvolvendo (é, pois é), eu me deparei novamente com um processo de criação similar ao de Qualidades e Defeitos. Desta vez, contudo, eu preferi tentar criar características que, por vezes, eram ambíguas. O resultado ficou muito divertido e eu passei meses pensando em criar uma nova versão do Danquesystem (meu arquivo no Doc até se chama 'Danquesystem 4.0', por conta de todo o drama envolvendo o D&D 4.0) até que, em minhas pesquisas, eu novamente me deparei com o FATE.


E dessa vez, eu realmente me deslumbrei e entendi o quão poderoso é o seu chamado.

Fatecore

Quando eu estava criando minha nova versão do sistema (doravante chamada de 4.0), uma das coisas que eu havia considerado era retirar o uso de Atributos e usar só as Perícias. Para substituí-las, por que não usar Qualidades e Defeitos? Pois bem, lá estava eu, novamente, depois de ter ficado insatisfeito com meu uso pouco criativo de Qualidades e Defeitos por anos, novamente fazendo listas com Qualidades incrivelmente originais como 'Fraco', 'Forte', 'Carismática', 'Ágil', zzzzzzzzz. Algumas coisas haviam melhorado desde a versão original do sistema?

Várias, certamente. Eu estava buscando mais coerência e consistência de novo, mas desta vez estava me saindo melhor... Entretanto, eu continuava insatisfeito. Foi na busca por inspiração que eu decidi dar uma olhada em outros sistemas e, felizmente, desta vez decidi dar bola para o FATE. Depois de baixar e ler o FATE Core, fiquei empolgadíssimo para testá-lo no cenário que criei. 

O cerne dos personagens de FATE é dividido entre os seus Aspectos, Perícias e Façanhas. Cada Aspecto é uma frase que simboliza uma característica que é melhor elaborada quando pode sofrer uma interpretação positiva e uma interpretação negativa; as Perícias funcionam como em outros jogos mesmo e as Façanhas são características especiais que modificam o funcionamento das Perícias.

Como os Aspectos e as Façanhas são bastante individuais (incentiva-se que os jogadores as criem [em conjunto e com ajuda/arbítrio do mestre]!), cada personagem de Fate acaba sendo absurdamente único! Suas fichas são tão cheias de personalidade que torna-se difícil não se entusiasmar com eles. E tudo isso funciona por conta do funcionamento da economia de Pontos de Destino (Fate Points) entre jogadores e Mestre.

Face a face com o Destino

Por influência do Unisystem, quando eu criei o Danquesystem eu quis embutir nele uma forma dos jogadores darem um incremento em suas jogadas de dados, como uma forma de reduzir o poder do acaso nos momentos que realmente importavam. Ao gastar um recurso, os jogadores poderiam melhorar suas chances, modificar os rumos da história ou até negociar a redução de suas falhas. Os módulos que joguei do Unisystem os chamavam de Pontos de Drama, o Sistema (brasileiro!) Daemon os chamava de Pontos Heroicos e eu já os chamei de Pontos de Sorte. Isto funcionava desde que os jogadores soubessem poupar para que tivessem estes pontos disponíveis quando precisassem.

Pensando agora, acho que um dos motivos que me levou a ignorar o FATE antes foi o mesmo que me levou a mudar o nome de Pontos de Sorte para Pontos de Motivação: eu queria que os jogadores se sentissem donos de sua própria história, não como se eles dependessem do Destino ou da Sorte. E eu ainda quero isso. Entretanto, por mais que o nome da mecânica não deva ser desprezado, é um erro desprezar um sistema tão bom por conta disso.

Eu havia mudado o nome de Pontos de Motivação para Pontos de Ânimo, orquestrei uma forma de garantir que o jogador quisesse correr atrás de satisfazer os desejos pessoais de seu personagem (graças à influência do fantástico Burning Wheels), e, por fim, consegui com que, tematicamente, o sistema todo se encaixasse.

O sistema de resolução de conflitos e de superação de provações do FATE não é nada revolucionário (perícia + dado vs. dificuldade), mas o que o torna sensacional é a possibilidade dos jogadores e do mestre de influenciarem em cada um dos testes realizados ao longo do jogo através do uso de Aspectos. Quando um jogador quer usar um Aspecto em seu benefício, ele gasta um Ponto de Destino e, com isso, pode melhorar (ou refazer) uma rolagem de dados; quando um mestre quer usar o Aspecto de um jogador em seu detrimento, ele oferece um Ponto de Destino àquele jogador ou o jogador perde um de seus Pontos de Destino. Com isso, o próprio sistema garante que, para que um Personagem use seus melhores poderes e Aspectos, ele esteja disposto a sofrer e pagar por eles também.

O quão incrível é isso em questão de paradigma de RPG é difícil descrever. Geralmente, os jogadores só escolhem desvantagens para seus personagens que não atrapalhem muito o seu estilo de jogo com o intuito de obter um contraponto positivo na própria montagem da ficha... Isso quase nunca melhora a história que está sendo narrada. Em FATE, é possível que um jogador PEÇA para que o mestre complique sua vida na história do jogo em troca de um Ponto de Destino, apontando para os seus Aspectos e dizendo 'ei, Mestre, você não acha que <tal coisa ruim> deveria acontecer porque meu personagem possui <tal aspecto>?'! Quantas vezes não vi jogadores escolherem a Desvantagem Pesadelo no meu sistema só porque ela é fácil de que o mestre se esqueça?

Resta agora jogar e verificar quais lições eu posso aprender com este sistema que tanto promete enquanto mestre e enquanto designer de um sistema. Semana que vem, espero que eu possa dizer, em jogo: alea jacta est!