Venho a cerca de um mês discutindo a importância de
lermos as narrativas que nos rodeiam para estarmos aptos para desconstruí-las
quando essas histórias não colaboram mais com os projetos que desenhamos para
nossos futuros, individuais e coletivos. Na semana passada especialmente falei
sobre isso e sua aplicação em um sistema de ensino, uma sala de aula. A
discussão formada em torno do ultimo post
foi profícua. Muitos amigos, colegas e educadores manifestaram-se, em apoio ou
repúdio a nosso projeto.
Então hoje, ao invés de trazer o post final da trilogia sobre a narrativa que venho escrevendo há semanas, resolvi
aplicar o exercício que há tempos venho discutindo: desconstruir uma narrativa
para poder julgá-la em termos estéticos, éticos e (por que não?) educativos.
Ser exemplo e mostrar do que estou falando para mais tarde apresentar os
desdobramentos ideais dessa atitude.
Existem várias maneiras de se desconstruir uma
história. Pode-se fazer isso por sua ideologia, por seus métodos narrativos, suas
referenciais, por suas formas de construção de cena, etc. Há sempre uma escolha
a se fazer sobre qual método assumir. Naturalmente o mais costumeiro é uma
sobreposição desses métodos.
No último filme da trilogia de Gotham City, dirigida por Christopher Nolan, encontramos uma trama
tensa, complexa e, para aqueles que muito esperavam daquilo que o diretor vinha
construindo até agora, decepcionante. Não porque a história seja rasa, ela não
é; nem porque o diretor assume a experiência socialista humana como um
exercício absoluto da opressão sobre os habitantes da mais importante cidade
americana (Nova York, a cidade que personifica Gotham nesse filme). Essas
leituras podem doer neste ou naquele observador, enquanto são aplaudidas por
outros.
O que determinou a decepção dessa história no meu
caso foi a imprecisão em detalhes que o diretor permitiu escapar. Nolan é um
narrador impecável, com títulos como Amnésia, Insônia, A Origem e os filmes anteriores da trilogia do Batman (Begins e O Cavaleiro das Trevas) em seu currículo. O preciosismo que esse
autor trabalha suas histórias é exemplar e quando apareceram os primeiros
trailers desse novo filme (Batman: The Dark Knight Rises) tudo indicava que sua
trilogia seria apoteótica e escrachada sobre os defeitos de uma sociedade que
produz, aplaude e excomunga um justiceiro encapuzado que, por ironia do destino
ou sorte adversa das camadas superiores, tem atitudes que consolidam o sistema
ao invés de combatê-lo.
Pois este é o Batman, não se enganem, um sociopata
desvairado que ao invés de combater os reais problemas que levaram sua família à
destruição passa a combater os próprios ladrões. O Batman não combate os vícios
que geram a maldade, ele combate os índices, em ultima análise outras vitimas,
desse mesmo caldo que o criou. Talvez por isso ele seja um herói tão
interessante: ele é forjado da mesma liga que são os vilões. Talvez por isso
também sem um grande antagonista o Batman não é nada. Quem dá o tom da luta,
não é o morcego e sim seus adversários.
Em Batman: O
cavaleiro das trevas, vimos o homem-morcego tentando combater um homem que,
nas palavras da personagem que é o contra-ponto são desse bom psicopata –
Alfred Pennyworth (interretado por Michael Caine na trilogia de Nolan) –, “só
quer ver o mundo queimar”. A lógica que guiou o herói durante sua carreira de
combate ao crime é posta a prova e uma nova atitude deve ser assumida pelo
vigilante, que, sem titubear faz isso: ele invade a privacidade de toda a
cidade simplesmente para pegar um homem cuja lógica ele não consegue entender
muito menos quebrar. Em uma analogia ao nosso mundo, não seria isso que os
estados ditatoriais fizeram? Não é isso o ato
patriótico aprovado pelo congresso americano depois do ataque as torres
gêmeas?
Mas Nolan é um narrador hábil demais para ser pego
desprevenido, e toda a tensão nesse momento da história não está posta em o
herói invadir ou não a privacidade da cidade. Porque sendo um herói ele sabe
que o que está fazendo é errado, por isso mesmo não será Bruce Wayne disfarçado
a manipular a máquina. Não a pessoa destacada a guiá-lo será Lucius Fox (interpretado
por Morgan Freeman), seu mentor intelectual e um amigo necessário dentro das
industrias Wayne.
A questão dramática fica a cargo de
outra escolha imposta pelo Coringa (interpretado magistralmente por Heath
Ledger): duas barcas de evacuação da cidade estão cheias de pessoas, uma por
pessoas comuns outra por detentos; as duas estão cheias de explosivos e o
detonador de uma está na outra; a barca que ativar primeiro o detonador irá se
salvar; caso nenhuma das duas ative-o, o Coringa explodirá ambas.
Note que o ápice da tensão dramática não está em o herói pegar ou não o vilão e
sim em como pessoas normais lidam com aquela situação. A caçada do morcego a
seu arqui-inimigo é pano de fundo para um drama real que pode acontecer em
qualquer mundo.
Já não é isso o que acontece em Batman: O cavaleiro das trevas ressurge.
O vilão desse filme já não é o caos, aquilo de desestrutura e impede a ordem.
Seu inimigo é mais palpável e real, ele é um homem, ele é, até o ultimo
momento, Bane, o guardião. Guardião de que, só se descobrirá ao fim da jornada
do morcego e mesmo assim ele será um homem, um monstro e um libertador. Fiquei
muito triste em notar que a libertação que ele oferece é, em ultima análise, a
libertação simples e pura das amarras sociais e não dos ditames que nos prendem
de maneira tola a um pedaço de papel que conferimos valor imaginário, o
dinheiro. Bane não respeita a vida humana, nem sequer tem apreço por ela e é
nisso que toda a possibilidade de igualdade some.
Ainda tenho minhas dúvidas sobre quais são as
posturas políticas do diretor, não consigo ler claramente suas intenções
quando, ao impor a “revolução” de Bane a Gotham City ele cria uma corte maluca
que deve julgar as pessoas e o juiz não é ninguém menos que o Espantalho, o
vilão fracassado, muito utilizado mas um tanto ausente de um propósito maior
como o Coringa. Certamente seu propósito é ridicularizar a revolução Francesa e
igualar Robespierre, herói e carrasco nesse episódio da história, ao
Espantalho. No entanto, não consigo deixar de pensar que o diretor só é capaz
de fazer tal troça dessa revolução porque ela, ao invés de guiar-nos a melhoria do mundo e das condições humanas, nos trouxera até aqui, essa Gotham
City aonde, nas palavras da mulher gato, “vocês viveram com tanto e deixaram
tão pouco para o resto de nós”.
O filme novo de Nolan é uma experiência. E uma
experiência ruim e decepcionante, mas não porque ele é raso. Ele é o que é,
porque ele não é categórico ao afirmar que assim como Bane é um socialismo-psicopata,
Batman é um capitalismo-psicopata. Ele não é categórico ao afirmar que o mundo
não tem salvação. E que tudo o que resta para as gerações futuras é a lembrança
feliz [e imaginária] na cabeça de um velho que não conseguiu salvar seu pupilo
(preste muita atenção na última aparição de Alfred Pennyworth nesse filme e
veja pelos meus olhos).
O Batman de Nolan é um herói e um anti-herói. O
diretor afirma, em alguma medida, que só os loucos são heróis, porque o resto
de nós tem muito a perder com isso. E seu último filme consegue tatear os
caminhos dessas perdas, sua única falha é não apresentar as perdas do Batman ou
de seu alter-ego social Bruce Wayne.