[Perdoem-me o tom confessional, mas como alguns
mestres me ensinaram: algumas narrativas exigem o seu prelúdio incorporado em
uma personagem.]
"Hélio era o lado de fora de uma luva, a ligação com o mundo
externo. Eu, a parte de dentro. Nós dois existimos a partir do momento em que
há uma mão que calce a luva." Lygia Clark, 1986
Ontem, entre os atos de se viver (pensar, estudar,
conversar, jantar, dormir etc.) por duas vezes, em duas conversas sem relação
entre si, eu fui questionado sobre a bondade nos tempos da internet. Eram
discussões vãs, conversas cotidianas, que escondiam por trás de si uma
inquietação que parece tomar toda uma geração. Gente jovem, ansiosa por viver e
experimentar todo o potencial aberto diante de si, pessoas que podem muito e
sabem que podem e que acreditam piamente que o mundo é e pode ser melhor do que
aquilo que mostram os tele jornais fatalistas das 8h, 12h, 20h, 24h... Minha
geração.
Nossos pais nos ensinaram bem, nossos professores
cumpriram seus papéis e agora, sabemos, chegou a nossa hora de montar o mundo.
Ainda que aos poucos. Minha geração parece não ter pressa em descobrir como
fazer isso, o tempo é nosso maior aliado dentro dessa comunidade global interconectada.
[A história costuma mover-se em marchas e
contra-marchas, caminhos que seguem e caminhos que voltam. Como um rio que ao
se encontrar com o mar tenta invadi-lo e o mar, em retribuição, devolve-lhe as
águas. Então, como não poderia deixar de ser, essa geração também tem em si
membros que desejam a manutenção do status das coisas como lhes foram
ensinadas. Estabilidade e instabilidade costumam caminhar juntas, nas
revoluções a instabilidade parece sobrepor-se, em outros momentos a estabilidade.
No fundo ambas caminham juntas todo o tempo.]
Pensar a bondade em um panorama tão complexo, onde
todos os lados e caminhos devem ser pesados; onde a informação circula, mas o
sentido por vezes não chega, acabou por me fazer perceber que eu não consigo definir
o que isso quer dizer. Bondade... parece um termo muito vago. Como julgar dois
lados de uma moeda desigual com apenas um olho? A ciência, a ética, a moral, a
inteligência pareciam falhar na tentativa de racionalizar um conceito-resposta
para a pergunta que me perseguia horas depois de minhas conversas acabarem: “O
que seria bondade?”, “O que significa isso?”.
A mente inquieta não costuma parar de funcionar. O
sono não chega; as conversas não se concentram; o peito travesso não deixa de
palpitar, animado. Quando eu era menor, passava noites em claro me perguntando
para onde “a gente” ia quando dormia ou sobre como os cachorros pensavam. Em
tempo aprendi que passar minhas noites em claro não traziam respostas
exatamente. Na verdade esses clarões traziam muito mais perguntas e
preocupações que respostas. E os dias seguiam polvilhados por cansaço. Em algum
momento de minha vida descobri a literatura e tive a sorte de ser muito bem
orientado em minhas leituras. Foram textos exemplares que discutiam, cada um a
sua maneira, a essência do que nos torna humanos.
A literatura me guiou por muito tempo em todos os
assuntos que poderiam me interessar. Então veio a Universidade de São Paulo, os
estudos constantes, os novos temas, os teóricos, a carreira, os sonhos, enfim:
a vida seguiu e a literatura tornou-se parte dela, ainda que sem sua aura e
força como em outro momento. Então eu me reuni com um professor, há pouco mais
de três anos, e ele me perguntou: “O que você está lendo?”, “Libelo contra a
arte moderna, de Salvador Dalí”, “Mas eu perguntei de literatura...”, “Bem,
professor, o Dalí não é exatamente teoria.”, “Mas também não é literatura, isso
é um manifesto. E não dos melhores.”. Sai dessa reunião transtornado. No
caminho comprei Um estudo em vermelho e depois O mar, mais tarde Notas
do subsolo. Desde então nunca parei de ler literatura ficcional junto da
teoria. Algum autor, novo ou velho, divertido ou cabeçudo sempre existiu em
minha vida daquele momento em diante.
Três anos depois alguém me pergunta sobre a bondade
e eu engasgo. Fico apreensivo, distraído, pensativo, tentando resolver um
problema que não é meu. E toda minha formação acadêmica, todo método que a
ciência me ensinou [que eu insisto em fingir para meus amigos cientistas que eu
não acredito e não uso], não dão conta em me ajudar.
Sem respostas, sem sono, sem conseguir me
concentrar, roubei: “se não consigo pensar, vou ler. Distrair-me-ei. Matar o
tempo até minha mente se aquietar e eu dormir.” E nas páginas de Ulysses,
encontrei alguém absolutamente integrado ao seu mundo, alguém que sente o mundo
girando ao seu redor e ajuda o Atlas a carregar todo o peso do mundo. É só uma
leitura, provavelmente ela é poética demais, possivelmente a mais imbecil que
se possa fazer da obra de Joyce. Mas já é alguma coisa. Joyce acendeu uma luz,
onde meu pensamento era tomado por trevas. Lembrei-me de Os Miseráveis
em seu primeiro livro, Um justo, e toda a maldade do mundo neste
universo.
Não estou montando essa narrativa para falar sobre
bondade. Ou sobre minhas conclusões. Elas são minhas, assim como são minhas as
leituras que fiz[1].
Estou escrevendo esse texto para apontar que uma boa história, um texto bem narrado
sempre pode trazer respostas inesperadas. Certamente isso pode estar na
literatura ficcional ou cientifica. Meu exemplo, minha história me levou a
encontrar mais respostas sobre a condição humana na literatura ficcional, mas
sei que autores como Marc Bloch ou Fernand Braudel foram tão importantes quanto
Victor Hugo ou James Joyce na formação de meu pensamento.
Uma boa história condensa em si elementos da vida
cotidiana, do momento histórico em que ela se passa, do conhecimento cientifico
que é tomado como importante naquele momento, daquilo que nunca muda e daquilo
que já mudou entre os homens. Nossas reuniões do Interpretar e Aprender me
ensinaram muito sobre narrativas, assim como todo o resto de minha vida também
me ensinou, mas o que estamos construindo com esse projeto me parece ser
exatamente o que apontaram esses outros homens que formaram e construíram a
nossa visão do passado. Queremos que todos os alunos com que tivemos, temos e
teremos contato consigam entender que a história não é dada, ela é construída
conjuntamente. Num projeto de mundo que toma todo o mundo. Qualquer história é
assim.
Queremos que eles, os aprendizes/o futuro, possam
construir qualquer história em sua vida. E que entendam suas vidas como
elementos importantes dessa construção. Jorge Luis Borges conta de um rei no
oriente que pretende fazer um mapa de proporção 1:1[2]. Um mapa que tem o mesmo
tamanho do país mapeado; um mapa, uma representação da realidade, que se cola e
se sobrepõe perfeitamente ao real. Borges não está falando do mapa. Ele está
falando da percepção humana, que necessariamente lê e dá sentido ao mundo. Mas
se o esforço for conjunto, se o esforço for coletivo então podemos criar um
denominador comum que molda e constrói o mundo e a realidade, com tanta facilidade
quanto construímos nossas histórias pessoais ou as histórias de nossos
personagens, que lidam com um mundo imaginário que é outro e o mesmo que o
nosso. Um projeto pretensioso, mas que se embasa na simples ideia de que
qualquer pessoa pode fazê-lo desde que compreenda como e para que isso deve
acontecer.
[1]. Por isso
inclusive evitei comentar autores, mas se algum dos títulos citados lhe pareceu
interessante: você conseguirá encontrá-los em qualquer livraria ou biblioteca
perto de sua casa.
[2]. Do rigor na ciência. In: Jorge
Luis Borges. História Universal da Infâmia.
Editora Globo: Rio de Janeiro, 1935.
Cara, que texto fantástico! Parabéns!! Bem escrito e bem pensado!
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