O grupo “Interpretar e Aprender” surgiu como ideia nos corredores da Universidade de São Paulo por três estudantes de História interessados em integrar diversão e aprendizagem. Apaixonados tanto por narrativas fantásticas quanto pelo ato de ensinar, estes amigos decidiram criar um grupo cujo intuito seria trabalhar, de forma prazerosa, os conteúdos escolares - e não haveria melhor maneira de fazê-lo do que utilizando o RPG, ou Role Playing Game.

sexta-feira, 1 de março de 2013

Son(h)eto ou Um estudo em carvão.

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Um e-mail na minha caixa de entrada. Um convite para um trabalho que pagava consideravelmente bem. Era uma proposta simples: trabalhar o conteúdo do ciclo do ouro no Brasil com crianças do quinto ano com RPG. Na minha cabeça isso significava crianças na quinta série, mas, com a reforma do ensino no Brasil, isso significava na verdade trabalhar com crianças na quarta série. Parece não haver diferença alguma, no entanto lembro-me dessa passagem em minha vida e sei que a mudança qualitativa dos conteúdos entre o quarto e o quinto ano é considerável.
Ainda assim eu, o Thiago e o Daniel não nos permitiram ficar assustados com essa situação. Por três semanas encontramo-nos durante jantares e cafés para pensar quais conteúdos deveriam ser abordados por nossa aventura e como isso poderia ser potente em uma história de RPG. Como as professoras nos conheciam e tinham plena consciência que a imaginação só é potente se irrestrita; confiaram-nos a capacidade de trabalharmos com quaisquer conteúdos da grade que achássemos necessários. Elegemos a escravidão, o cerceamento da vida cotidiana e as relações de troca em um quadrilátero pouco alimentado e de acesso restrito como os temas mais relevantes a serem trabalhados para aquelas turmas.
Como transformar conteúdos tão potentes e, ao mesmo tempo, polêmicos em uma vivência? Essa era a questão central do jogo. Precisávamos que as crianças vivessem e se lembrassem do que viviam como conteúdos maiores do que eles realmente podem parecer na lida diária. Estipulamos poucas regras para nos ajudar. A primeira era que eles poderiam escolher seus personagens apenas entre uma limitada seleção pré-fabricada; assim garantíamos que cada personagem a sua maneira já estivesse envolvido com a trama. Para diversificar as opções e mostrar a grande diversidade dentre a população brasileira elegemos personagens que eram escravos, senhores, caçadores de escravos e religiosos de ambos os sexos para que os alunos pudessem escolher quem cada um deles interpretaria.
A seguir pensamos que, ainda que o enredo estivesse pontilhado por muitos conteúdos, a aventura deveria ter uma história simples, com algumas viradas em seu decorrer e personagens não-jogadores (NPC) que estivessem dispostos tanto a ajudá-los como atrapalhá-los, o que garantia por sua vez que os alunos deveriam prestar atenção mesmo quando não estavam praticando ação alguma para reconhecer se era possível ou não pensar nas informações como verdadeiras ou falsas. Por fim, a regra mais importante a aventura deveria ser um mistério. Uma caçada ao assassino de escravos que havia assassinado a propriedade de um distinto Senhor dono de uma mina de ouro próximo a Mariana.

Nossa intenção era maximizar a diversão dos envolvidos sem permitir que os conteúdos pudessem ser ignorados de forma alguma. Todas as pistas e indicações que os alunos encontrariam estariam sempre envolvidas em um panorama histórico e um mistério que se projetava como sombrio. A solução estética que encontramos para garantir esses dois pontos foram uma narração tensa e cheia de sombras e personagens que tentavam, por vezes, incriminar jogadores sobre o assassinato.
Os jogadores interagiram de maneira única com a aventura. Todos permaneceram em seus papéis atentos ao seu entorno e o que cada elemento da narrativa significava em um panorama histórico. Foi interessante notar como os alunos resolveram o enigma, mais ainda como eles relacionaram cada um de seus avatares em jogo, as personagens de jogadores e interpretadas pelo mestre, com arquétipos que existem em nosso imaginário contemporâneo sobre o período. O exercício da imaginação foi ali imprescindível para a perda da dimensão individual de jogo e de construção de narrativa para que cada um de nossos alunos, durante aquele dia, percebessem que toda história pode [e em alguma medida] é uma narração coletiva de um dado que pertence mais ao passado do que ao presente. Afinal o momento está sempre escapando-nos pelos dedos.

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