O grupo “Interpretar e Aprender” surgiu como ideia nos corredores da Universidade de São Paulo por três estudantes de História interessados em integrar diversão e aprendizagem. Apaixonados tanto por narrativas fantásticas quanto pelo ato de ensinar, estes amigos decidiram criar um grupo cujo intuito seria trabalhar, de forma prazerosa, os conteúdos escolares - e não haveria melhor maneira de fazê-lo do que utilizando o RPG, ou Role Playing Game.

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Heróis e vilões

Um vilão, stritus senso é um habitante de uma vila. Narrativamente esperamos, no entanto, que eles sejam os antagonistas dos heróis. Heróis são seres humanos que superam esta condição por realizarem feitos, espera-se, que sejam humanamente impossíveis. Mas como é que se delimita o que é possível?


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Essa é uma pergunta pertinente, tão pertinente que cabe aqui uma pequena digressão. Veja, em 1974, o então campeão mundial dos pesos pesados de boxe, George Foreman, foi desafiado por Cassius Marcellus Clay Jr.. Clay tinha 32 anos, uma idade avançada para continuar na carreira de pugilista.
Em meio a um ambiente de revolta em relação aos direitos civis dos negros Cassius Marcellus Clay se negava a aceitar o domínio dos brancos em seu país natal, os EE.UU. (Estados Unidos da América). Para tanto, quando desafiou seu compatriota também negro, este representando o estatuto das coisas como eram, Clay não esquiva-se da batalha física e moral que começa ali.
A luta, como ficou conhecida graças ao livro de Norman Mailer, causou tamanha comoção entre os conterrâneos de Clay que teve de ocorrer fora do território Norte americano. Depois de muita discussão e muito desencontro decidiu-se que ela seria realizada no Zaire em 30 de outubro de 1974. Nesse momento Cassius Marcellus Clay Jr já era uma lenda entre os pugilistas, conhecido como Muhammad Ali depois de se converter ao islamismo, ele era, sem dúvida, o mais interessante pugilista até aquele momento. Mas seu oponente, George Foreman, era quase uma década mais jovem e alguns quilos mais forte que ele.
"Essa luta vai ser um massacre", diziam os comentaristas. E foi. Por oito rounds Foreman atacou sem piedade a lenda de Muhammad Ali. E chega a ser quase embaraçoso assistir à luta pois naquele ringue ocorre um massacre!



"Voe como uma borboleta, pique como uma abelha" era o lema de Ali enquanto treinava. Depois de oito rounds e incontáveis golpes, Muhammad Ali encerra essa batalha com apenas dois golpes contra Foreman. [Deixando o terceiro preparado, mas não soltando-o por misericórdia a um adversário que merece seu respeito.] Como ninguém previu isso? Como criamos o limite do possível e como alguns de nós insistem em extrapolá-lo?
Encontramos ai, enfim, um herói contemporâneo. Não porque ele superou a idade e o esforço físico, mas porque Muhammad Ali imbuiu a demanda de uma sociedade em uma luta. Não eram homens que se enfrentavam sobre aquele ringue, eram duas versões de mundo muito diversas entre si, e a esperada derrota nunca chegou. Pelo contrário, vemos que a partir desta luta chegaram novos ares, sentidos de renovação e esperança antes perdidos.
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O possível é um limite criado e imposto por nós a nós mesmos. Vilões e heróis costumam testá-lo, expandi-lo. O que diferencia um de outro então? A razão moral que guia um e outro. Enquanto o herói irá preservar paradigmas morais interessantes a esta sociedade o vilão irá propor outro [e possivelmente tentar destruir o anterior]. Não a toa temos deidades de panteões anteriores ao cristianismo incorporadas tanto como elementos celestiais (anjos) como temo-nas também incorporadas como senhores infernais (demônios) na eterna luta entre o bem e o mal dentro da mitologia cristã. Como um Deus pode se tornar um demônio? Se desconsiderarmos a discussão metafísica (por ser por demais extensa e por demais enviesada) temos de partir do pressuposto de que os homens acessam parcialidades da deidade e então criam representações para ela, essas representações, por serem criadas, tem dentro de si paradigmas relacionados ao tempo sociedade e cultura em que foram  criadas/descobertas; dai decorre a leitura de que Deuses podem tornar-se anacrônicos, desnecessários nas formas de representação em que foram "aprisionados".



Heróis e vilões na verdade se constroem a partir de seus pontos de vista e não a partir de sua atuação. O RPG como ferramenta de aprendizado pode trazer questões problemáticas como essa à uma nova luz, especialmente na escola. Porque a escola é a instituição, por excelência que deve imbuir na criança as estruturas linguísticas e conceitos teóricos que nos permite aprofundar em questões como: qual a diferença entre um herói e um vilão?
Dado que durante o jogo todos são protagonistas, a razão herói/vilão não nascerá a partir da mera oposição entre um e outro, ela surgirá através das escolhas e decisões assumidas em campanha, em narrativa. O que levanta a pergunta: Por que não interpelar narrativas através de nossas presenças nelas ao invés de simplesmente aceitarmos as narrativas como acontece com os livros? [Não me entendam mal, os livros são outra chave de acesso, com outras questões linguísticas a serem resolvidas.] Para uma criança ou um adolescente a atuação conjunta desses elementos (RPG e Literatura) parece ser mais efetiva do que o simples assistir de palestras nos moldes das escolas como conhecemos.

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