
Alguém por ai quer quebrar nosso espírito. Há todo um sistema formado para tornar nossas
cidades cinza, nossas caminhadas em passeios de carro, nossos pensamentos em
discussões sobre o que aconteceu na novela, seriado ou reality show de ontem à
noite. Mas nada disso é mais potente para esse sistema do que o uso
inconsciente do “eles”. Eles os donos do sistema, eles que aceitam o mundo
enquanto um dado e não conseguem concebê-lo enquanto uma construção, eles o
inimigo, eles o outro. Falar do sistema [ou deles] sem pensar em quem permite
que tudo isso aconteça é o mesmo que deixar acontecer, pois não existem
culpados e mal existem causas [visíveis].
Indo para meu trabalho hoje, decidi seguir por um caminho
diferente. No meio da confusão do tráfego e as casas passando rápido notei que
uma sinuca antiga que frenqüentei até pouco tempo foi demolida. Tudo, menos a
fachada, foi posto abaixo e justamente na parte que ainda estava em pé liam-se
cartazes com dizeres como “Ela cantava baixinho em seu ouvido enquanto estavam
na fila do cinema e, felizes, dançavam devagarinho” ou “No colo da mãe a vida
passa rápido pela janela do quarto”. Um exercício de poesia, sem dúvida,
habitando a cidade. Ideias ou quase clichês que animavam muito os passantes que
se davam ao trabalho de nota-las. Eu me animei!
E foi essa reação em mim que desencadeou o pensamento de que
“Alguém por ai quer quebrar nosso espírito”. A cidade passava pela janela de
meu carro sem eu nota-la até a ideia disparatada de um meio-artista-meio-maluco
me acertar como um murro na cara e me levar a pensar sobre o quão tristes são
os dias em São Paulo quando o dia nasce nublado e meio chuvoso. Faz muita
diferença a iluminação solar.
Essa história poderia ter acontecido em qualquer lugar. Em
meu caminho para o trabalho depois de uma noite mal dormida, em um livro ou em
uma mesa de RPG em que os jogadores não são vampiros e criaturas fantasiosas
mas apenas peões de um sistema [de jogo] em que as pessoas são manipuladas
diariamente para fazerem o que precisam fazer e não o que realmente querem.
Esperai, eu estou falando de RPG ou do mundo em que vivemos?

A vida humana é uma exceção entre os outros tipos de vida
que conhecemos e conseguimos nos relacionar com. Isso porque o homem, até onde
sabemos, é o único ser dotado da capacidade de imaginar. É através da
imaginação que as ideias conseguem transformar o mundo como o vemos no que ele
poderia ser. É por causa dela que conseguimos todos os confortos que a vida
moderna consegue nos conceder. Coisa como sofás, geladeiras, telefones e
banheiro dentro de casa eram inconcebíveis como existência há meio milênio.
Ainda assim aqui estão todos eles mostrando-nos que sua existência não é apenas
crível como também útil. O problema que surge então é que agora mal conseguimos
conceber como seria o mundo sem eles. Mas alguns de nós [humanos] queremos e
insistimos em nos colocar em situações absurdas onde eles não podem existir.
Por que será?
Não acho que é uma nostalgia romanceada, acho que é mais do
que isso. Todo o passado está no presente, basta seguirmos cem, duzentos ou mil
quilômetros para o interior do continente e nossos celulares deixam de
funcionar, se continuarmos, muito provavelmente existirão casas sem banheiros
dentro de casa. Se não formos mesquinhos e olharmos para o lado podemos
encontrar isso mais perto do que imaginamos (sim, existem favelas. E existem
condições de vida em algumas delas em que um banheiro dentro de casa é um
inconcebível conforto. Um celular então...). Mas o que o RPG tem a ver com
problemas sociais de ordem municipal, estadual ou federal? TUDO!
O RPG não é somente uma ferramenta lúdica, é também
pedagógica e, portanto, política. Nele os personagens são colocados dentro de uma
história e, exatamente pela relativa incapacidade de punição existente nesse
universo imaginário, são obrigados a tomarem decisões extremadas de condições
cotidianas que encontramos em nossas vidas. [Fora que: ele (o jogo de RPG) não
permite que o espírito (figurado, não literal) dos envolvidos na seção seja
esmagado por uma realidade alienante que insiste em nos engolir.] Ora,
encontrar-se com uma situação similar as que vivemos diariamente porém de
maneira extremada é também entender que em última instância suas decisões mais
corriqueiras são atitudes políticas importantes de cada um diante de sua
própria cidade, estado ou nação. Ou será que não?