O grupo “Interpretar e Aprender” surgiu como ideia nos corredores da Universidade de São Paulo por três estudantes de História interessados em integrar diversão e aprendizagem. Apaixonados tanto por narrativas fantásticas quanto pelo ato de ensinar, estes amigos decidiram criar um grupo cujo intuito seria trabalhar, de forma prazerosa, os conteúdos escolares - e não haveria melhor maneira de fazê-lo do que utilizando o RPG, ou Role Playing Game.

quinta-feira, 28 de março de 2013

Novas necessidades, projetos nem tanto - Parte I

Já não é novidade nas escolas do país uma nova metodologia de ensino: a educação baseada em projetos. Bibliografia sobre o tema não falta. A ideia é simples: tornar o aluno produtor de conhecimento. Este movimento de mudança do papel do aluno, antes receptor de conteúdo, passivo e crente no professor, vem mudando há mais tempo ainda. Claro que as diferenças devem ser levadas em conta entre o ensino fundamental e médio, e sempre a tecnologia está intrinsecamente ligada às práticas de estudo. 

Foi exatamente neste cenário que minhas primeiras experiências de docência aconteceram. Entrei na escola como plantonista, e no meu segundo ano o então coordenador Francisco Aguirra me deu a primeira oportunidade após eu apresentar um texto sobre a prática do RPG na educação (lá em 2008 o embrião do nosso grupo já se formava). Na época, havia uma disciplina dedicada exclusivamente a projetos a partir do 6º ano do fundamental. Cada ano do fundamental utilizava um tema gerador para os projetos criados pelos alunos e no 6º ano o intuito era trabalhar com o lúdico. Jogos de tabuleiro eram praxe e estavam procurando algo novo. Em ano de olimpíada , nada mais óbvio que utilizar a China como tema secundário. As duas professoras, Arlaine e Lígia, me deram total apoio e muitas dicas, decidimos que uma das três turmas iria produzir um RPG. As outras criaram outro tipo de jogos (uma criou um tabuleiro gigante sobre a viagem de Marco Polo, com uma extensa pesquisa; e outra pesquisou jogos chineses e se basearam neles para criar seus jogos).

Para decidir qual classe trabalharia com o RPG, tivemos a mesma experiência com as três classes. Eu praticamente nunca havia mestrado uma aventura, muito menos criado uma do zero e nunca estivera no controle de uma sala antes. Decidi por uma aventura simples (seria o primeiro contato dos alunos com o RPG): Curumatara de Maria do Carmo Zanini. Os aventureiros deviam ajudar o Curupira a salvar a natureza. Simples, não? Não. A verdade é que a aventura não aconteceu em um bom fluxo. Claro que alguns alunos embarcaram na ideia e gostaram do jogo e da experiência (um deles ainda lembra a atividade nas aulas de sociologia da 2ª série do médio), mas alguns alunos não conseguiram se conectar à história. Escolhida a turma, precisava conquistá-los com uma aventura mais envolvente. Escolhi a aventura de Leandro Villella "Assassinato na corte de Elizabeth I", uma das oito aventuras contidas aqui. O mistério foi a escolha certa, se eu tivesse rolado um dado, seria um sucesso decisivo, com certeza. É por isso que as aventuras do Grupo Interpretar e Aprender sempre trazem, de certa maneira, um mistério. É a maneira perfeita de prender os alunos. 

Mas divaguei, estava falando da disciplina de projetos, e da necessidade de mudança na educação, também percebida pelos alunos, não só pelos estudiosos. No ensino médio os alunos podiam escolher o tema de seu projeto. Era necessária a produção de um projeto de pesquisa, uma monografia e eram submetidos à uma banca de qualificação, sempre produzindo um diário de bordo (exigência de feiras científicas pelo Brasil a fora), orientados por um professor especialista, além do professor da disciplina. Meu primeiro orientando tinha como tema a violência nos vídeo-games. O aluno não se destacava nas matérias convencionais mas fez um excelente trabalho. Essa foi uma característica comum na metodologia de projetos, alunos com grandes dificuldades produzem trabalhos de ótima qualidade. Não fugindo à esta regra, em 2012 um aluno daquela turma de 6º ano iniciou uma pesquisa sobre os benefícios do RPG no tratamento de crianças com síndrome de Down

Outra característica é uma quantidade considerável de trabalhos pensando o próprio ensino. No ano passado uma aluna ganhou um prêmio da IBM com um trabalho sobre as dificuldades de aprendizado de matemática nos 6º e 7º anos, durante a FEBRACE (Feira Brasileira de ciências e engenharia). É clara a necessidade de mudanças vindas dos próprios alunos. 

Foi justamente a visita à FEBRACE deste ano, acompanhando outro aluno, que me veio este post na cabeça, um trabalho em específico me chamou a atenção pela originalidade, mas falei tanto neste post que os alunos merecem um espaço maior, semana que vem. Por isso adicionei "Parte I" ao título.

Continua aqui

quarta-feira, 20 de março de 2013

Fantasia e Preconceitos (1a Parte)

O melhor do caminho até as Montanhas da Danação Eterna é a vista. Uau.

Em 2009, eu estava lendo sobre o universo do jogo Elder Scrolls IV: Oblivion para adaptar um sistema de RPG em que eu e meus amigos pudéssemos jogar uma campanha neste cenário. Elder Scrolls é uma franquia de jogos para computadores relativamente antiga e seus últimos lançamentos oferecem um sistema de jogo bastante aberto, em que jogadores podem explorar e se aventurar por um universo fantástico como em poucos outros jogos no mercado.

Um dos pontos fortes deste cenário é a profundidade e detalhamento do background do jogo (isto é, aqueles elementos que servem para aumentar a imersão do jogador mas interferem muito pouco na estrutura narrativa do design do jogo). Diversas dúvidas me foram surgindo conforme eu me perdia lendo sobre sua cosmogonia, suas diferentes culturas, seus livros ficcionais - sim, livros de ficção escritos em um universo ficcional... Alguém mais pensou em Inception?) e comparava este universo com outros cenários fantásticos com os quais me deparara (os brasileiros Arkanun e Tormenta, os gringos Forgotten Realms e Castelo Falkenstein, por exemplo) e com o próprio mundo em que vivemos.

Um livro dentro de um jogo, escrito por um personagem do jogo falando de personagens criados por ele em uma ficção. Entendi. Acho.

Uma destas dúvidas foi gerada devido conforme lia sobre os Redguard. No universo do jogo, eles são membros de uma raça humana de aventureiros, exploradores e conquistadores cuja cultura possui um características bastante inspiradas na cultura espanhola. Jogadores podem escolher ser Redguard e viver as aventuras que o jogo tem a oferecer na pele de um deles. Visualmente, em que se diferenciam das demais raças humanas? Eles são negros.

Pois bem, o jogo possui ainda outras três raças estereotípicas de homens: os Nords, vikings bárbaros; os Imperiais, romanos manipuladores e os Breton, bretões mágicos. Advinhem qual, dentre essas, é a mais apta para o combate e menos apta para tarefas intelectuais? Pois bem, se vocês pensaram em Redguard, acertaram. Neste jogo, em específico, cada uma das raças possui habilidades especiais. Os Imperiais, por exemplo, podem usar seu charme para fazer com que uma pessoa goste deles. Adivinhem qual o poder dos Redguards? Descarga de adrenalina; eles podem ficar mais fortes e mais rápidos quando em perigo. Reduzir a história criada pelos desenvolvedores do jogo para os Redguard a isso é pouco, mas acho que, por esse ângulo, algumas questões bastante relevantes devem ser levantadas.

Já Forgotten Realms, universo ficcional mais conhecido e tradicional de Dungeons & Dragons, traz mais claramente os Chult e os Turmish*. Quem são eles? Um povo tribal em uma sociedade de baixa tecnologia. Em comum com os Redguard, também temem a magia. Já os Turmish são um pouco parecidos com os Redguard: gostam de usar armaduras intrincadas e são bastante vaidosos, com uma cultura bastante "moderna" dentro de seu universo. Diferentemente de ambos os outros povos fantásticos, contudo, são mais pacíficos, dedicam-se ao comércio e seu povo é extremamente bem educado. Apesar disso, os Turmish punem com a morte pessoas que se mostram incapazes de provar sua perícia com determinada habilidade se elas disserem que são capazes de fazê-lo. Apesar de negros, os Turmish foram claramente inspirados nos turcos, enquanto os Chult foram inspirados no que os desenvolvedores do jogo consideraram como "cultura africana".

Veja, são universos fantásticos, certo? Eu entendo isso. Mas fantasias são extensões de nossas ideias e o que vemos aqui são dois universos riquíssimos em que os autores tratam os negros de forma semelhante: os aspectos mais elogiosos de suas culturas fantásticas são inspirados em lugares de fora da África e de povos que não são compostos predominantemente por negros, enquanto os aspectos menos elogiosos são derivados de preconceitos bastante difundidos na cultura ocidental branca (negros como ignorantes [medo de magia em um cenário onde todos os povos se utilizam dela?], por exemplo). Se estamos fantasiando, por que, ao invés de criar povos negros baseados nestes etereótipos, não procurar nas culturas africanas aquilo que elas oferecem de interessante e elaborar um povo que, ao invés de reafirmar preconceitos, busque acabar com eles? Não é nem que os Redguards e os Turmish não sejam representações dignas dentro das limitações de seus criadores, mas elas poderiam ser infinitamente melhores, certo?

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"Ah, mas a armadura do Seiya também cobria quase nada!"


Na segunda parte, o feminino e a fantasia.
Bikini Armor ou "armadura realista"?, "mulher-macho" ou Guerreira lvl. 5?, realismo histórico ou medievalidade seletiva?

Continua aqui
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* Como o universo do Forgotten Realms é imenso e eu não o conheço tão bem, é possível que hajam ainda outros povos de pele escura - pelo que li, povos inspirados nos árabes com pele ambiguamente escura. Acredito, contudo, que estes sejam os mais representativos.

quarta-feira, 13 de março de 2013

Campanha: Alimentem os blogs

Os companheiros do Pontos de Experiência lançaram uma ótima campanha para incentivar os leitores de blogs a interagirem com comentários nos vários blogs lidos pela rede. Nós do Interpretar e Aprender não podemos concordar mais! Como blogueiro, nada mais satisfaz do que quando nossas ideias surtem discussões e atingem, em maior ou menor grau, os corações e mentes dos leitores. 

Como o Diogo bem diz em sua campanha, as redes sociais acabam por concentrar as discussões, mas o blog é nossa menina dos olhos. Essa é nossa causa e consequência.

As imagens para a campanha estão no post original e uma das versões pode ser conferidas aqui ao lado, há também a versão mais escura:



Queremos saber, leitores, se vocês são alunos, professores, rpgistas, curiosos, amigos, inimigos, ou se caíram aqui em nossa página por acaso procurando uma imagem do Goku, ou um astrólogo procurando interpretação para as estrelas, ou ainda porque clicou no botão "Estou com sorte" com "Orc Sex" digitado no google.

Vocês entenderam o recado! Não economizem esses dedos!

quarta-feira, 6 de março de 2013

Por fim, um pensamento

Se você vem acompanhando nas ultimas três semanas os posts nesse blog, sabe que estamos revisitando nossas memórias da primeira aventura que fizemos como grupo. Son(h)eto e Como começamos falavam dos momentos decisivos em que este grupo reuniu-se e definiu conteúdos e potências a serem explorados junto as turmas do quinto ano do colégio Emilie de Villeneuve.
 
Uma vez que preparamos a aventura, os personagens e os conteúdos, restava-nos aplicá-los. O fato é que a imprevisibilidade dos resultados garantia que nós professores, educadores e rpgistas necessariamente deveríamos nos preparar para dar tudo errado. Os alunos não perceberem os conteúdos, os professores não se interessarem por nosso método, as crianças entenderem que aquilo não era divertido etc. Tudo poderia acontecer, mas as aventuras que mestramos anteriormente para nossos amigos e colegas garantiam-nos que, mesmo que a história (matéria de colégio) fosse legada ao segundo plano, a diversão seria garantida.
 
Era necessário que nos preparássemos para mudar, alterar nosso itinerário histórico para propor para os alunos certo tipo de dedução lógica aplicável ao panorama histórico, mas não apenas. Assim o mistério do assassinato do escravo estava fundamentado em premissas lógicas, muito mais semelhantes a um jogo de tabuleiro do que a um jogo de RPG. Essa estrutura limitada era potencializada pelo fato de que os alunos deveriam transformar-se em seus personagens e resolver o enigma proposto.
 
Nós precisaríamos, talvez adaptar a dificuldade das pistas e explorar a personalidade de cada pessoa daquele universo que não fosse um jogador, assim completando uma somatória ao resultado em que os participantes descobririam quem foi o assassino. Estávamos temerosos, mas isso não importava. O que importava naquela situação era a ambientação e as relações que os alunos conseguiriam criar e explorar, não aquilo em que possivelmente falharíamos.
 
Cada aventura foi uma experiência única. As classes se dividiram e resolveram o enigma cada uma a sua maneira. Como os conteúdos estavam pulverizados e os alunos interessados, pudemos em cada uma das quatro turmas que recebemos criar variações que tornavam o assassino cada vez um personagem, chegando ao ponto de em uma das aventuras eu conseguir criar um panorama tal que um dos jogadores era (e sabia que era) o assassino. Assim os outros tentavam descobri-lo e ele tentava fugir.
 
E experiência sensível criou nos alunos uma relação muito própria com o ambiente, o conteúdo e os professores. Sentimo-nos muito bem recebidos. Terminada a jogatina, surgiu um novo problema. Uma nova questão. Como perceber os reflexos de nosso trabalho? Nós não iriamos aplicar uma prova para os alunos. Não eram nossos os alunos, não estabelecemos um contato prolongado o suficiente para podermos perceber esses pontos.
 
Passaram-se meses de inquietação. Por fim, em um almoço com meus colegas de equipe, pensamos em um método. Mas esse é o tema de outro post.

sexta-feira, 1 de março de 2013

Son(h)eto ou Um estudo em carvão.

Esta série de posts começa aqui

Um e-mail na minha caixa de entrada. Um convite para um trabalho que pagava consideravelmente bem. Era uma proposta simples: trabalhar o conteúdo do ciclo do ouro no Brasil com crianças do quinto ano com RPG. Na minha cabeça isso significava crianças na quinta série, mas, com a reforma do ensino no Brasil, isso significava na verdade trabalhar com crianças na quarta série. Parece não haver diferença alguma, no entanto lembro-me dessa passagem em minha vida e sei que a mudança qualitativa dos conteúdos entre o quarto e o quinto ano é considerável.
Ainda assim eu, o Thiago e o Daniel não nos permitiram ficar assustados com essa situação. Por três semanas encontramo-nos durante jantares e cafés para pensar quais conteúdos deveriam ser abordados por nossa aventura e como isso poderia ser potente em uma história de RPG. Como as professoras nos conheciam e tinham plena consciência que a imaginação só é potente se irrestrita; confiaram-nos a capacidade de trabalharmos com quaisquer conteúdos da grade que achássemos necessários. Elegemos a escravidão, o cerceamento da vida cotidiana e as relações de troca em um quadrilátero pouco alimentado e de acesso restrito como os temas mais relevantes a serem trabalhados para aquelas turmas.
Como transformar conteúdos tão potentes e, ao mesmo tempo, polêmicos em uma vivência? Essa era a questão central do jogo. Precisávamos que as crianças vivessem e se lembrassem do que viviam como conteúdos maiores do que eles realmente podem parecer na lida diária. Estipulamos poucas regras para nos ajudar. A primeira era que eles poderiam escolher seus personagens apenas entre uma limitada seleção pré-fabricada; assim garantíamos que cada personagem a sua maneira já estivesse envolvido com a trama. Para diversificar as opções e mostrar a grande diversidade dentre a população brasileira elegemos personagens que eram escravos, senhores, caçadores de escravos e religiosos de ambos os sexos para que os alunos pudessem escolher quem cada um deles interpretaria.
A seguir pensamos que, ainda que o enredo estivesse pontilhado por muitos conteúdos, a aventura deveria ter uma história simples, com algumas viradas em seu decorrer e personagens não-jogadores (NPC) que estivessem dispostos tanto a ajudá-los como atrapalhá-los, o que garantia por sua vez que os alunos deveriam prestar atenção mesmo quando não estavam praticando ação alguma para reconhecer se era possível ou não pensar nas informações como verdadeiras ou falsas. Por fim, a regra mais importante a aventura deveria ser um mistério. Uma caçada ao assassino de escravos que havia assassinado a propriedade de um distinto Senhor dono de uma mina de ouro próximo a Mariana.

Nossa intenção era maximizar a diversão dos envolvidos sem permitir que os conteúdos pudessem ser ignorados de forma alguma. Todas as pistas e indicações que os alunos encontrariam estariam sempre envolvidas em um panorama histórico e um mistério que se projetava como sombrio. A solução estética que encontramos para garantir esses dois pontos foram uma narração tensa e cheia de sombras e personagens que tentavam, por vezes, incriminar jogadores sobre o assassinato.
Os jogadores interagiram de maneira única com a aventura. Todos permaneceram em seus papéis atentos ao seu entorno e o que cada elemento da narrativa significava em um panorama histórico. Foi interessante notar como os alunos resolveram o enigma, mais ainda como eles relacionaram cada um de seus avatares em jogo, as personagens de jogadores e interpretadas pelo mestre, com arquétipos que existem em nosso imaginário contemporâneo sobre o período. O exercício da imaginação foi ali imprescindível para a perda da dimensão individual de jogo e de construção de narrativa para que cada um de nossos alunos, durante aquele dia, percebessem que toda história pode [e em alguma medida] é uma narração coletiva de um dado que pertence mais ao passado do que ao presente. Afinal o momento está sempre escapando-nos pelos dedos.