O grupo “Interpretar e Aprender” surgiu como ideia nos corredores da Universidade de São Paulo por três estudantes de História interessados em integrar diversão e aprendizagem. Apaixonados tanto por narrativas fantásticas quanto pelo ato de ensinar, estes amigos decidiram criar um grupo cujo intuito seria trabalhar, de forma prazerosa, os conteúdos escolares - e não haveria melhor maneira de fazê-lo do que utilizando o RPG, ou Role Playing Game.

quarta-feira, 20 de março de 2013

Fantasia e Preconceitos (1a Parte)

O melhor do caminho até as Montanhas da Danação Eterna é a vista. Uau.

Em 2009, eu estava lendo sobre o universo do jogo Elder Scrolls IV: Oblivion para adaptar um sistema de RPG em que eu e meus amigos pudéssemos jogar uma campanha neste cenário. Elder Scrolls é uma franquia de jogos para computadores relativamente antiga e seus últimos lançamentos oferecem um sistema de jogo bastante aberto, em que jogadores podem explorar e se aventurar por um universo fantástico como em poucos outros jogos no mercado.

Um dos pontos fortes deste cenário é a profundidade e detalhamento do background do jogo (isto é, aqueles elementos que servem para aumentar a imersão do jogador mas interferem muito pouco na estrutura narrativa do design do jogo). Diversas dúvidas me foram surgindo conforme eu me perdia lendo sobre sua cosmogonia, suas diferentes culturas, seus livros ficcionais - sim, livros de ficção escritos em um universo ficcional... Alguém mais pensou em Inception?) e comparava este universo com outros cenários fantásticos com os quais me deparara (os brasileiros Arkanun e Tormenta, os gringos Forgotten Realms e Castelo Falkenstein, por exemplo) e com o próprio mundo em que vivemos.

Um livro dentro de um jogo, escrito por um personagem do jogo falando de personagens criados por ele em uma ficção. Entendi. Acho.

Uma destas dúvidas foi gerada devido conforme lia sobre os Redguard. No universo do jogo, eles são membros de uma raça humana de aventureiros, exploradores e conquistadores cuja cultura possui um características bastante inspiradas na cultura espanhola. Jogadores podem escolher ser Redguard e viver as aventuras que o jogo tem a oferecer na pele de um deles. Visualmente, em que se diferenciam das demais raças humanas? Eles são negros.

Pois bem, o jogo possui ainda outras três raças estereotípicas de homens: os Nords, vikings bárbaros; os Imperiais, romanos manipuladores e os Breton, bretões mágicos. Advinhem qual, dentre essas, é a mais apta para o combate e menos apta para tarefas intelectuais? Pois bem, se vocês pensaram em Redguard, acertaram. Neste jogo, em específico, cada uma das raças possui habilidades especiais. Os Imperiais, por exemplo, podem usar seu charme para fazer com que uma pessoa goste deles. Adivinhem qual o poder dos Redguards? Descarga de adrenalina; eles podem ficar mais fortes e mais rápidos quando em perigo. Reduzir a história criada pelos desenvolvedores do jogo para os Redguard a isso é pouco, mas acho que, por esse ângulo, algumas questões bastante relevantes devem ser levantadas.

Já Forgotten Realms, universo ficcional mais conhecido e tradicional de Dungeons & Dragons, traz mais claramente os Chult e os Turmish*. Quem são eles? Um povo tribal em uma sociedade de baixa tecnologia. Em comum com os Redguard, também temem a magia. Já os Turmish são um pouco parecidos com os Redguard: gostam de usar armaduras intrincadas e são bastante vaidosos, com uma cultura bastante "moderna" dentro de seu universo. Diferentemente de ambos os outros povos fantásticos, contudo, são mais pacíficos, dedicam-se ao comércio e seu povo é extremamente bem educado. Apesar disso, os Turmish punem com a morte pessoas que se mostram incapazes de provar sua perícia com determinada habilidade se elas disserem que são capazes de fazê-lo. Apesar de negros, os Turmish foram claramente inspirados nos turcos, enquanto os Chult foram inspirados no que os desenvolvedores do jogo consideraram como "cultura africana".

Veja, são universos fantásticos, certo? Eu entendo isso. Mas fantasias são extensões de nossas ideias e o que vemos aqui são dois universos riquíssimos em que os autores tratam os negros de forma semelhante: os aspectos mais elogiosos de suas culturas fantásticas são inspirados em lugares de fora da África e de povos que não são compostos predominantemente por negros, enquanto os aspectos menos elogiosos são derivados de preconceitos bastante difundidos na cultura ocidental branca (negros como ignorantes [medo de magia em um cenário onde todos os povos se utilizam dela?], por exemplo). Se estamos fantasiando, por que, ao invés de criar povos negros baseados nestes etereótipos, não procurar nas culturas africanas aquilo que elas oferecem de interessante e elaborar um povo que, ao invés de reafirmar preconceitos, busque acabar com eles? Não é nem que os Redguards e os Turmish não sejam representações dignas dentro das limitações de seus criadores, mas elas poderiam ser infinitamente melhores, certo?

***

"Ah, mas a armadura do Seiya também cobria quase nada!"


Na segunda parte, o feminino e a fantasia.
Bikini Armor ou "armadura realista"?, "mulher-macho" ou Guerreira lvl. 5?, realismo histórico ou medievalidade seletiva?

Continua aqui
-
* Como o universo do Forgotten Realms é imenso e eu não o conheço tão bem, é possível que hajam ainda outros povos de pele escura - pelo que li, povos inspirados nos árabes com pele ambiguamente escura. Acredito, contudo, que estes sejam os mais representativos.

4 comentários:

  1. Excelente post. Passarei a acompanhar vcs ^^

    ResponderExcluir
  2. Cara,descobri agora seu blog e achei muito bom. Com relacao a esse post, eu tenho um cenario chamado tresmundos, onde o sul é gelado e o povo nortista, que sao negros, sao detentores da mais fina cultura e de grandes segredos. Uma quebra de paradigmas dos cenarios que vc citou. Alem disso, o machismo existe em apenas alguns povos, nao sendo comum mini armaduras e cousas assim.
    se puder da uma olhada. Escrevi sobre isso no post machismo nosso de cada dia.
    o blog e cancoesdasluasdeinverno.blogspot.com

    ResponderExcluir
  3. Olá, criador! Seja benvindo!
    Muito interessante seu cenário! Eu mesmo tenho um cenário similar, cujo intuito é o de desnaturalizar e questionar certos conceitos utilizados nos RPGs! Quanto mais autores produzirem alternativas ao atual mainstream, maior a probabilidade de que no futuro surjam autores que também o façam! Acho que, para ficar em ícones culturais dos RPGs de videogame, o Elder Scrolls, The Witcher e o Dragon Age deram passos imensos na direção de questionar os fundamentos lançado por Gygax e cia. no D&D e no paradigma que se configurou ao redor de conversões jogáveis da obra do Tolkien.

    Abração e sucesso com seu cenário!

    ResponderExcluir