O grupo “Interpretar e Aprender” surgiu como ideia nos corredores da Universidade de São Paulo por três estudantes de História interessados em integrar diversão e aprendizagem. Apaixonados tanto por narrativas fantásticas quanto pelo ato de ensinar, estes amigos decidiram criar um grupo cujo intuito seria trabalhar, de forma prazerosa, os conteúdos escolares - e não haveria melhor maneira de fazê-lo do que utilizando o RPG, ou Role Playing Game.

quarta-feira, 13 de maio de 2015

Relato de aventura

No mês de Março, pelo segundo ano, o Grupo I&A realizou aventuras na festa de aniversário dos nossos mais fiéis jogadores. Esse ano contamos com a presença do Renan Viestel, professor de matemática e RPGista. Na verdade, o Renan faz parte da pré-história do I&A, já que, antes de fundarmos o grupo, o Thiago jogou pela primeira vez com alunos do colégio I.L. Peretz e dividiu o trabalho com o Renan. Ele fez a gentileza de descrever como foi a experiência!

Quem já observou uma criança brincando percebe que os jogos surgem com certa naturalidade dentro de seu repertório de atividades divertidas. Segundo Piaget, os jogos se apresentam de três maneiras na infância:
- jogo de exploração: onde a criança, normalmente de 0 a 2 anos, explora o mundo pegando, mordendo e abraçando tudo que está em seu alcance.
- jogo de interpretação: a criança interpreta situações do cotidiano, como brincar de escola, e corrige suas frustrações. Também existe a versão fantástica, na qual a criança é capaz de projetar seus desejos e inquietações extrapolando sua imaginação.
- jogo de regras: a criança tende a aceitar um conjunto de regras, criadas com sua participação ou não, e fazer com que esses combinados sejam a lei momentânea, se esforçando para que todos os envolvidos sigam essa lei.
O objetivo desse texto é relatar a experiência que vivi com o grupo "Interpretar e aprender", na qual buscamos fazer uso de um movimento natural do desenvolvimento da criança, o jogo de interpretação, para introduzir conceitos de disciplinas escolares. Desde o princípio, me animei com o convite do grupo para narrar uma aventura em uma festa de aniversário. Confesso que tive certo receio ao introduzir desafios matemáticos no decorrer da aventura, principalmente porque era um momento de puro lazer das crianças. Ao chegar no local da festa a atmosfera de empolgação era palpável, os meninos ouviam com atenção a descrição de cada um dos quatro cenários que havíamos planejado e as caras de surpresa se encontravam com nossos sorrisos de satisfação. Uma vez definidos os grupos e feitas as apresentações, avançamos para a fase de elaboração da ficha, onde naturalmente testaram os nossos limites propondo personagens cada vez mais fora da nossa realidade. Nesse momento a total falta de censura de nossa parte levou os meninos ao êxtase, tivemos um arqueiro empunhando uma besta atiradora de beterraba no grupo, um goblin ladrão de tumbas que era melhor amigo de um paladino da justiça e um mago bipolar.


fb.com/GameDesignerSincero


Mas e a matemática? Diante desse cenário maluco, na sala de estar de uma festa de aniversário, meus desafios pareciam fadados ao fracasso. Vocês não podem imaginar minha surpresa diante do empenho dos alunos ao buscarem a solução dos desafios. Não houve reclamação e nem cara feia, tudo que estava diante deles era o desafio de inteligência a ser superado para que entrassem na câmara da perdição ou na ponte dos desejos. A colaboração dos integrantes do grupo e a preocupação em levar em consideração todas as ideias me mostraram que aquilo que buscamos em sala de aula, a motivação necessária para apreciação, pode ser desenvolvida por meio da imaginação das crianças, contextualizando as histórias infantis e criando sentido para elementos criativos, que a princípio flertam com o absurdo.
Refletindo sobre a experiência do aprendizado por meio da interpretação pude tirar conclusões e aprender por meio de minha narração e observação. É inevitável que os paralelos com a sala de aula se formem em meus pensamentos enquanto trago o que de mais rico pude presenciar em uma atividade lúdica.
Não é raro que alunos “vistam a carapuça” de bom ou de mau aluno, fazendo cumprir uma profecia autorealizadora, onde seu rótulo define suas ações e aprendizados. O jogo de interpretação pode deslocar esse papel pré-definido pelo aluno e o trabalho em grupo destacar suas contribuições para superar um determinado desafio.
O RPG é um excelente instrumento para abordar conceitos porém, se comparado com uma aula convencional, podemos ter a impressão de um tempo mal aproveitado para o ensino de um determinado conteúdo. O engano de tal hipótese não está na relação “conteúdo ensinado/tempo”, mas sim em assumir que a assimilação dos tópicos abordados se faz no exato momento em que o aluno é exposto à fala do professor.
Trabalhar uma série de conceitos a partir de uma narração exige um certo tempo para realizar a ambientação dos alunos, além de contar com um planejamento que insira os conteúdos escolares de forma a manter o sentido da história e empolgar as crianças. Essas características do jogo de interpretação fazem com que a quantidade de conteúdos abordadas em uma partida seja menor do que em sala de aula, mas traz para os participantes uma riqueza de repertório que dificilmente se vê nos livros didáticos.
Para que fique claro o conceito de repertório, faremos um paralelo com o ato de jogar futebol na rua, onde não se estudam táticas e técnicas de chute e passe, mas a criança é exposta a conflitos e situações que mexem com seu emocional, além de empiricamente testar hipóteses sobre tudo que faz parte do esporte. Caso essa criança venha treinar em uma escola de futebol, a mesma associará aquele treinamento técnico à sua vivência e prática, ainda que agora em um nível diferente. Transportando a situação para o ensino de matemática, podemos colocar as explicações e exercícios como parte do treinamento, enquanto as atividades lúdicas cumprem o papel de primeiro acesso ao conteúdo.
Encerro este pequeno relato com um pensamento de Piaget que evidencia a importância de criarmos situações em que colocamos crianças como protagonistas do seu aprendizado.
“Tudo o que se ensina a uma criança, a criança não pode mais, ela mesma, descobrir ou inventar”

Renan Viestel é professor de matemática dos colégios Pentágono e Alef e mestre em Ensino da Matemática.






quarta-feira, 6 de maio de 2015

Saindo da caixa

Nessas últimas duas semanas nosso grupo experimentou aquela estranha sensação de estar dando tudo certo. Encontramos diversas pessoas que podem tornar-se nossos parceiros ou colaboradores. Uma dessas pessoas é Alex Bretas, idealizador da Educação Fora da Caixa:

"A Educação Fora da Caixa é uma investigação sobre formas inovadoras de aprendizagem com foco em jovens e adultos. A escola acabou por assumir a posição de espaço educativo privilegiado, mas acredito que a aprendizagem ocorre em consonância com a vida - basta ter olhos de ver. Neste sentido, acredito que o público escolar deve buscar ser mais permeável ao que ocorre tanto do lado de fora de seus muros quanto dentro de cada criança e adolescente (suas curiosidades, necessidades e desejos que anseiam ser escutados). O projeto, bem como o Kit Educação Fora da Caixa - uma caixa de ferramentas educacionais inovadoras disponibilizada online - são convites expressos a este permitir-se."


Empolgados, corremos para conversar com ele e mergulharmos em seu projeto. Transformamos nosso interesse em interlocução em uma divertida entrevista feita ao longo de uma semana. Esperamos que a leitura seja tão agradável quanto foi criar esta ponte entre o Grupo Interpretar e Aprender e a Educação Fora da Caixa:

Grupo Interpretar & Aprender: O que chamou seu interesse para métodos pedagógicos alternativos?

Alex Bretas: Em primeiro lugar, minha biografia, que conta com vários casos em que me senti tolhido na escola, na universidade e no trabalho. A motivação para de fato começar um projeto na área de educação veio quando me mudei para São Paulo, no final de 2013, e conheci mais a fundo as escolas democráticas. Aí então vi que existiam alternativas mais humanas.

GI&A: Você já jogou RPG? Se sim, como foi sua experiência?

AB: Nunca tive uma experiência de RPG de mesa, mas adorava (ainda gosto, mas não tenho mais tanto tempo) jogar RPGs de ação no computador. Diablo, por exemplo, eu joguei por inúmeras horas... Era um prazer, embora o fator vício fosse uma preocupação às vezes. Tenho vários amigos que jogam RPG frequentemente e gostam demais. Quem sabe não esteja na hora de experimentar?

GI&A: Quais as experiências mais significativas vivenciadas por você ao longo de sua pesquisa?

AB: Tenho tido muitas experiências marcantes... Difícil pinçar somente algumas. No início do projeto, fiz uma campanha de financiamento coletivo para viabilizar a publicação do livro com os resultados da pesquisa. A experiência de fazer um pedido claro à sua rede por recursos financeiros foi algo muito significativo, especialmente numa cultura como a nossa em que dinheiro é tabu. A era da colaboração já está aí para que repensemos essas crenças. Quando fiz o primeiro Círculo de Doutorandos Informais, um workshop de um dia sobre aprendizagem livre, também me senti extremamente recompensado. Em termos de pesquisa, que foi o que você perguntou, comecei a estudar um filósofo austríaco, Paul Feyerabend, e escrevi uma carta a ele. Infelizmente não havia como receber uma resposta porque ele morreu há muitos anos. De todo jeito, o ato de escrever me dirigindo a ele foi muito forte porque a obra dele me impactou demais.

GI&A: Como funciona o processo do Círculo de Doutorandos Informais (CDI)?


AB: O CDI é um provocador de autonomia, um abre-alas de curiosidades. É um encontro de um dia inteiro em que as pessoas são convidadas a criar seus próprios processos de aprendizagem independente e em colaboração com os outros. Para mais informações, vejam estes dois textos sobre alguns CDIs que já aconteceram: CDI SP, CDI BH.


Alex (em pé) durante um CDI em Belo Horizonte

GI&A: Para você, qual o papel da criatividade no processo educativo? Dentre as ferramentas educacionais que você pesquisou, qual delas você consideraria como a mais criativa?

AB: A criatividade é a própria aprendizagem parindo! Não vejo possibilidade de uma estar dissociada da outra. Ensino, sim, pode estar separado da criatividade, aprender não, porque a aprendizagem parte da potência interna de cada um de nós. Acho que o que há de mais criativo é engajar crianças, jovens e adultos num processo de criar suas próprias ferramentas. Jogos, brincadeiras, métodos, técnicas, instrumentos, jeitos de fazer. Para citar uma, gosto muito do MDI - Maneiras Diferentes e Inovadoras - que o Tião Rocha criou no CPCD. Vai justamente neste sentido de estimular a criação...

GI&A: Há, em sua pesquisa, alguma ferramenta que utilize jogos de interpretação na educação?

AB: Como minha investigação é sobre aprendizagem num sentido amplo, não somente o que se dá em espaços formais de ensino, existem algumas ferramentas sim. O Teatro Social da Presença, um dos instrumentos da Teoria U de Otto Scharmer, é uma delas. O Teatro do Oprimido também é muito interessante, inclusive já atuei em algumas esquetes. Acredito que o recurso da interpretação é um aliado poderosíssimo da aprendizagem, mas para que essa parceria ocorra é necessário que a ferramenta não seja imposta ao educando. É preciso que surja dele ou que seja um convite para uma degustação. Isso, inclusive, é o que pra mim diferencia o aprender do ensinar. O ensino muitas vezes não convida nem escuta.

GI&A: Como a experiência de processos não impositivos funcionaria em uma escola tradicional em que basicamente tudo é imposto?

AB: Funcionaria em pequena escala, num primeiro momento. Quase tudo começa pequeno, e é bom que seja assim. Se numa escola um professor ousado consegue reunir mais dois que topam experimentar novos caminhos, isso já é o início de uma revolução. As ferramentas podem ser úteis como faíscas de um novo jeito de fazer. A partir daí, a comunidade escolar vai percebendo o valor das inovações e devagarzinho os processos se ampliam. Não é fácil, mas é possível.

GI&A: Qual a maior dificuldade encontrada pelos professores interessados em aplicar estas ferramentas nas instituições escolares ou em seus próprios processos educativos?

AB: A dificuldade é sistêmica. Ocorre pelo tipo de relação que se dá na maioria dos espaços institucionalizados, profundamente hierárquica. O professor ter uma boa ideia de uma nova ação pedagógica é interessante, porque mesmo isso atualmente é complicado por conta de sua rotina massacrante e das amarras institucionais - que se revelam tanto em escolas e universidades públicas quanto privadas. Mas, às crianças e jovens é preciso darmos voz de verdade, não só no nosso discurso. De que adianta ensinar a história da democracia sem perguntar se o aluno quer aprender democracia? É incoerente. Quais as ferramentas que surgem de quem aprende? Quais os interesses? Não se fazer essas perguntas acaba gerando o principal problema percebido pelos profissionais de educação atualmente: a falta de interesse e a desmotivação dos alunos.

GI&A: Como as ferramentas pesquisadas relacionam-se com as tradições pedagógicas brasileiras? Você as considera como rupturas na educação atual?

Várias ferramentas que tenho pesquisado, inclusive as relacionadas à interpretação, podem ser consideradas inovadoras frente ao que vem sendo feito tradicionalmente nas escolas. E isso não é algo restrito ao Brasil, visto que o modelo de educação fabril, impositivo e linear é uma praga global. Ainda assim, acredito que a principal ruptura que já está ocorrendo no campo da educação é a devolução aos educandos do direito de escolher. Escolher o que e como querem aprender, num processo facilitado pelo professor. É uma ruptura no nível de visão de mundo, bastante profunda, mas que não pode ser imposta, porque senão sofreria do mesmo mal do sistema atual. Todas as ferramentas que apostam nos desejos e necessidades dos educandos e no seu direito de manifestá-las são disruptivas, ao meu ver.

GI&A: Que materiais de referência você recomenda para quem busca implementar métodos pedagógicos diversificados?

AB: Queria indicar o Kit da Educação Fora da Caixa que estou montando. Toda semana escrevo sobre três ferramentas educacionais que considero inovadoras. Outra indicação é o site do Reevo, uma comunidade latino-americana sobre educação alternativa. Por fim, o livro que me inspirou a fundar o projeto é uma leitura excelente para quem deseja inaugurar novos caminhos na educação: chama-se Volta ao Mundo em 13 Escolas e está disponível para download na íntegra.


GI&A: O termo “ferramentas” dá um tom utilitário à educação ou aos educandos? Seu projeto vem para consertar algo que está quebrado?

AB: Interessante a pergunta! Não vejo a utilização da palavra "ferramenta" num sentido de oficina, de consertar algo não... Vejo no sentido de ser um instrumento que pode ser útil para se chegar a um lugar que, sem ele, seria muito mais difícil de alcançar. Um lugar de cooperação, de autonomia, de protagonismo e de sabedoria. Não acho que a educação deva ser utilitária, muito menos os educandos, mas acredito sim que uma ferramenta, tal como a estou entendendo, pode ser um portal que amplia nossa visão a respeito da aprendizagem por meio da ação. E o que eu mais gostaria escrevendo sobre as ferramentas é que as pessoas cocriassem a partir delas, experimentassem para além delas o que servir melhor a cada contexto, a cada realidade.

Agradecemos imensamente ao Alex pela simpatia e pela entrevista, e desejamos muito sucesso em seus projetos.


Alex Bretas é administrador público e especialista em pedagogia da cooperação e metodologias colaborativas