O grupo “Interpretar e Aprender” surgiu como ideia nos corredores da Universidade de São Paulo por três estudantes de História interessados em integrar diversão e aprendizagem. Apaixonados tanto por narrativas fantásticas quanto pelo ato de ensinar, estes amigos decidiram criar um grupo cujo intuito seria trabalhar, de forma prazerosa, os conteúdos escolares - e não haveria melhor maneira de fazê-lo do que utilizando o RPG, ou Role Playing Game.

quinta-feira, 19 de julho de 2012

AmoraldaHistória

[Perdoem-me o tom confessional, mas como alguns mestres me ensinaram: algumas narrativas exigem o seu prelúdio incorporado em uma personagem.]

"Hélio era o lado de fora de uma luva, a ligação com o mundo externo. Eu, a parte de dentro. Nós dois existimos a partir do momento em que há uma mão que calce a luva." Lygia Clark, 1986

Ontem, entre os atos de se viver (pensar, estudar, conversar, jantar, dormir etc.) por duas vezes, em duas conversas sem relação entre si, eu fui questionado sobre a bondade nos tempos da internet. Eram discussões vãs, conversas cotidianas, que escondiam por trás de si uma inquietação que parece tomar toda uma geração. Gente jovem, ansiosa por viver e experimentar todo o potencial aberto diante de si, pessoas que podem muito e sabem que podem e que acreditam piamente que o mundo é e pode ser melhor do que aquilo que mostram os tele jornais fatalistas das 8h, 12h, 20h, 24h... Minha geração.

Nossos pais nos ensinaram bem, nossos professores cumpriram seus papéis e agora, sabemos, chegou a nossa hora de montar o mundo. Ainda que aos poucos. Minha geração parece não ter pressa em descobrir como fazer isso, o tempo é nosso maior aliado dentro dessa comunidade global interconectada.

[A história costuma mover-se em marchas e contra-marchas, caminhos que seguem e caminhos que voltam. Como um rio que ao se encontrar com o mar tenta invadi-lo e o mar, em retribuição, devolve-lhe as águas. Então, como não poderia deixar de ser, essa geração também tem em si membros que desejam a manutenção do status das coisas como lhes foram ensinadas. Estabilidade e instabilidade costumam caminhar juntas, nas revoluções a instabilidade parece sobrepor-se, em outros momentos a estabilidade. No fundo ambas caminham juntas todo o tempo.]

Pensar a bondade em um panorama tão complexo, onde todos os lados e caminhos devem ser pesados; onde a informação circula, mas o sentido por vezes não chega, acabou por me fazer perceber que eu não consigo definir o que isso quer dizer. Bondade... parece um termo muito vago. Como julgar dois lados de uma moeda desigual com apenas um olho? A ciência, a ética, a moral, a inteligência pareciam falhar na tentativa de racionalizar um conceito-resposta para a pergunta que me perseguia horas depois de minhas conversas acabarem: “O que seria bondade?”, “O que significa isso?”.

A mente inquieta não costuma parar de funcionar. O sono não chega; as conversas não se concentram; o peito travesso não deixa de palpitar, animado. Quando eu era menor, passava noites em claro me perguntando para onde “a gente” ia quando dormia ou sobre como os cachorros pensavam. Em tempo aprendi que passar minhas noites em claro não traziam respostas exatamente. Na verdade esses clarões traziam muito mais perguntas e preocupações que respostas. E os dias seguiam polvilhados por cansaço. Em algum momento de minha vida descobri a literatura e tive a sorte de ser muito bem orientado em minhas leituras. Foram textos exemplares que discutiam, cada um a sua maneira, a essência do que nos torna humanos.

A literatura me guiou por muito tempo em todos os assuntos que poderiam me interessar. Então veio a Universidade de São Paulo, os estudos constantes, os novos temas, os teóricos, a carreira, os sonhos, enfim: a vida seguiu e a literatura tornou-se parte dela, ainda que sem sua aura e força como em outro momento. Então eu me reuni com um professor, há pouco mais de três anos, e ele me perguntou: “O que você está lendo?”, “Libelo contra a arte moderna, de Salvador Dalí”, “Mas eu perguntei de literatura...”, “Bem, professor, o Dalí não é exatamente teoria.”, “Mas também não é literatura, isso é um manifesto. E não dos melhores.”. Sai dessa reunião transtornado. No caminho comprei Um estudo em vermelho e depois O mar, mais tarde Notas do subsolo. Desde então nunca parei de ler literatura ficcional junto da teoria. Algum autor, novo ou velho, divertido ou cabeçudo sempre existiu em minha vida daquele momento em diante.

Três anos depois alguém me pergunta sobre a bondade e eu engasgo. Fico apreensivo, distraído, pensativo, tentando resolver um problema que não é meu. E toda minha formação acadêmica, todo método que a ciência me ensinou [que eu insisto em fingir para meus amigos cientistas que eu não acredito e não uso], não dão conta em me ajudar.

Sem respostas, sem sono, sem conseguir me concentrar, roubei: “se não consigo pensar, vou ler. Distrair-me-ei. Matar o tempo até minha mente se aquietar e eu dormir.” E nas páginas de Ulysses, encontrei alguém absolutamente integrado ao seu mundo, alguém que sente o mundo girando ao seu redor e ajuda o Atlas a carregar todo o peso do mundo. É só uma leitura, provavelmente ela é poética demais, possivelmente a mais imbecil que se possa fazer da obra de Joyce. Mas já é alguma coisa. Joyce acendeu uma luz, onde meu pensamento era tomado por trevas. Lembrei-me de Os Miseráveis em seu primeiro livro, Um justo, e toda a maldade do mundo neste universo.

Não estou montando essa narrativa para falar sobre bondade. Ou sobre minhas conclusões. Elas são minhas, assim como são minhas as leituras que fiz[1]. Estou escrevendo esse texto para apontar que uma boa história, um texto bem narrado sempre pode trazer respostas inesperadas. Certamente isso pode estar na literatura ficcional ou cientifica. Meu exemplo, minha história me levou a encontrar mais respostas sobre a condição humana na literatura ficcional, mas sei que autores como Marc Bloch ou Fernand Braudel foram tão importantes quanto Victor Hugo ou James Joyce na formação de meu pensamento.

Uma boa história condensa em si elementos da vida cotidiana, do momento histórico em que ela se passa, do conhecimento cientifico que é tomado como importante naquele momento, daquilo que nunca muda e daquilo que já mudou entre os homens. Nossas reuniões do Interpretar e Aprender me ensinaram muito sobre narrativas, assim como todo o resto de minha vida também me ensinou, mas o que estamos construindo com esse projeto me parece ser exatamente o que apontaram esses outros homens que formaram e construíram a nossa visão do passado. Queremos que todos os alunos com que tivemos, temos e teremos contato consigam entender que a história não é dada, ela é construída conjuntamente. Num projeto de mundo que toma todo o mundo. Qualquer história é assim.

Queremos que eles, os aprendizes/o futuro, possam construir qualquer história em sua vida. E que entendam suas vidas como elementos importantes dessa construção. Jorge Luis Borges conta de um rei no oriente que pretende fazer um mapa de proporção 1:1[2]. Um mapa que tem o mesmo tamanho do país mapeado; um mapa, uma representação da realidade, que se cola e se sobrepõe perfeitamente ao real. Borges não está falando do mapa. Ele está falando da percepção humana, que necessariamente lê e dá sentido ao mundo. Mas se o esforço for conjunto, se o esforço for coletivo então podemos criar um denominador comum que molda e constrói o mundo e a realidade, com tanta facilidade quanto construímos nossas histórias pessoais ou as histórias de nossos personagens, que lidam com um mundo imaginário que é outro e o mesmo que o nosso. Um projeto pretensioso, mas que se embasa na simples ideia de que qualquer pessoa pode fazê-lo desde que compreenda como e para que isso deve acontecer.


[1]. Por isso inclusive evitei comentar autores, mas se algum dos títulos citados lhe pareceu interessante: você conseguirá encontrá-los em qualquer livraria ou biblioteca perto de sua casa.
[2]. Do rigor na ciência. In: Jorge Luis Borges. História Universal da Infâmia. Editora Globo: Rio de Janeiro, 1935.

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