O grupo “Interpretar e Aprender” surgiu como ideia nos corredores da Universidade de São Paulo por três estudantes de História interessados em integrar diversão e aprendizagem. Apaixonados tanto por narrativas fantásticas quanto pelo ato de ensinar, estes amigos decidiram criar um grupo cujo intuito seria trabalhar, de forma prazerosa, os conteúdos escolares - e não haveria melhor maneira de fazê-lo do que utilizando o RPG, ou Role Playing Game.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Panorama da publicação de RPG no Brasil


por Maria do Carmo Zanini
(Publicado originalmente no blog Contatos Imediatos e reproduzido com a permissão da autora no blog Metagamers e aqui, no Interpretar e Aprender. Atualizado em 12 set. 2012)
Já declarei em várias ocasiões que, particularmente, eu achava que a melhor saída para a produção de RPGs no Brasil seria transformar o fã, o amador (que ama seu hobby), em profissional.
O grande  problema que sempre paira sobre as editoras de RPG a Devir é não ter dinheiro suficiente para pagar (o preço de mercado) pelos serviços de bons profissionais. O amador quer ajudá-las, mas muitas vezes não sabe como, ou acha que é capaz de ajudar, mas não percebe que ainda tem um longo percurso pela frente até conseguir produzir alguma coisa com a qualidade queb fãs como ele ou ela exigem.
Talvez eu tenha essa percepção porque acabei me tornando tradutora e produtora editorial por ser um desses amadores bem-intencionados, que só precisavam de um empurrãozinho e muita orientação para seguir em frente. Com esta série de posts a respeito da produção editorial de RPGs (traduzidos), vou tentar dar uma força aos amadores que querem ver mais títulos de boa qualidade traduzidos e publicados por aqui.
Pretendo começar oferecendo um panorama do trabalho que realizamos na Devir Livraria quando um título publicado originalmente em língua estrangeira chega ao departamento editorial e entra em produção. Nos posts que ainda virão, tentarei abordar cada etapa do processo, ressaltando por que elas são importantes e os tipos de problemas que elas foram criadas para resolver.

Panorama da Produção Editorial

E, no começo, o publisher disse: "Faça-se!". Um acordo de tradução foi fechado e o primeiro livro, produto ou manual de RPG aterrissou na mesa do produtor editorial.
Vamos às principais etapas de um longo processo:

1. Recuperar ou criar a memória de tradução

Se for uma linha de RPG novinha em folha, haverá zilhões de termos de jogo, expressões do cenário ou do sistema de regras que alguém terá de levantar, registrar, listar e até mesmo traduzir.
No caso de materiais que dão continuidade a uma linha que já tem publicações em português, além de levantar o "glossário" do material em questão, também é necessário tomar o cuidado de verificar se um termo ou expressão já foi traduzido anteriormente e se foi registrado na memória de tradução.
Num mundo ideal, nenhum livro de RPG deveria seguir para a etapa seguinte sem antes ter essa memória criada ou recuperada, porque é esse esforço inicial que vai garantir a tradução consistente dos termos de jogo em todas as publicações da linha.
(Pena que o mundo em que vivemos não é ideal…)

2. Traduzir

Verter um texto de uma língua para outra não é das coisas mais fáceis de se fazer nesta vida. O tradutor não é um algoritmo que se contenta em vasculhar um banco de dados e traduzir palavra por palavra de acordo com diretrizes predefinidas. O contexto altera significados, a cultura do idioma de origem do texto nem sempre tem equivalentes precisos na cultura do idioma de destino, o autor original tem um estilo próprio. E por aí vai…
A função principal do tradutor é tornar o texto inteligível para o leitor da língua de destino (no nosso caso, o português), mas também precisa se preocupar em manter o tom e, na medida do possível, simular o estilo do original.
Traduzir manuais de RPG é uma experiência e tanto, pois o texto varia do formal, árido e técnico — "o personagem será automaticamente bem-sucedido em todas as tentativas de contatar a pessoa com Diapsiquia" — ao literário e elevado — "é um país de alegria perene em jardins de arbustos nodosos, de montanhas feitas de ossos semirroídos" — e ao igualmente literário, embora vulgar — "mas então, peguei uma baranga no bar e puxei conversa".

2.5 Revisar a tradução

Esta é a meia etapa que nenhum produtor editorial gosta de fazer, pois representa uma duplicação do esforço e do tempo de produção. Infelizmente, ela é muitas vezes imprescindível na produção de RPGs traduzidos.
A revisão da tradução é necessária quando o trabalho do tradutor deixou a desejar. Não estamos falando de pequenos deslizes aqui e ali, e sim de problemas graves de interpretação do texto original em vários pontos. Estamos falando de coisas que levam o leitor de língua portuguesa a dar às regras ou ao cenário do jogo uma interpretação completamente diferente daquela pretendida pelos autores do texto original.

3. Preparar o texto

Já vi em várias ocasiões algumas pessoas tratarem esta etapa como uma mera "revisão gramatical", mas a preparação não se limita a isso. Na produção de manuais de RPG traduzidos, o preparador tem várias preocupações:
a. Cotejar a tradução com o texto original, para ver se não houve saltos, ou seja, trechos que constam do original, mas foram omitidos na tradução;
b. Garantir que o texto em português esteja em conformidade com as regras gramaticais e ortográficas da variante de prestígio da língua portuguesa falada no Brasil;
c. Garantir que o texto em português tenha boa fluência, ou seja, que a tradução não causará estranhamentos ao leitor brasileiro, que a estrutura das frases e as expressões idiomáticas sejam próprias da língua portuguesa falada no Brasil;
d. Zelar pelo bom estilo do texto, evitando, por exemplo, ambiguidades, a repetição exagerada de advérbios terminados em -mente, e assim por diante;
e. Garantir a normalização do texto de acordo com os padrões da editora e do projeto gráfico do livro (coisas como a maneira de tratar os numerais ou o que grafar em itálico ou negrito);
f. Zelar pela padronização dos termos e expressões de jogo, ou seja, garantir que a memória de tradução será respeitada e aplicada (é quase uma revisão técnica);
g. Identificar incoerências que podem até mesmo constar do original, sugerir esclarecimentos ou notas de rodapé; ou seja, dar ao editor as informações de que ele ou ela vai precisar para tomar boas decisões editoriais.
Para sugerir suas alterações, o preparador costuma usar as "marcas de revisão" e as "anotações", funções que os processadores de texto mais usados costumam apresentar. Seu trabalho será analisado pelo editor, que decidirá quais alterações implementar e quais ignorar (mantendo, assim, as decisões do tradutor).

4. O olhar do editor

A produtora editorial que me ensinou uns 60% do que sei a respeito de livros chamava esta etapa de "validação". É uma maneira de supervisionar o trabalho do tradutor e do preparador, de resolver conflitos entre as opiniões e preferências de um e outro, mas também é o momento em que a pessoa encarregada de dar uma "cara" ao manual ou à linha de RPG pode tomar contato direto com o material e decidir o que será necessário adaptar, mudar, introduzir ou retirar, sempre pensando em como o produto será recebido pelo RPGista brasileiro.

5. Diagramar

Diagramar é pegar o(s) arquivo(s) gerado(s) por um processador de texto como o MS Word ou o Writer do Libre Office e transformá-lo(s) num belo livro com identidade visual própria.
Em geral, a licença que nos permite traduzir um RPG estrangeiro também prevê que usemos um projeto gráfico já pronto. O layout, a tipografia, as ilustrações: tudo isso já foi definido pelos designers originais. A vantagem é não ter de tirar um projeto da manga. A desvantagem é encaixar um texto de volume mais ou menos 30% maior no mesmo número de páginas (isso acontece principalmente quando a tradução se dá do inglês para o português).
Nos casos em que há liberdade para usar um projeto gráfico novo ou diferente, um designer terá de criá-lo.

6. Obter ISBN, ficha catalográfica e classificação indicativa

O ISBN, ou International Standard Book Number,  é "um sistema que identifica numericamente os livros segundo o título, o autor, o país e a editora, individualizando-os inclusive por edição". Costuma aparecer impresso junto ao código de barras na quarta capa (o verso) do livro e também na página de créditos. Deve ser requerido à Agência Brasileira do ISBN da Fundação Biblioteca Nacional.
A ficha catalográfica serve para facilitar a vida dos bibliotecários Brasil afora e aparece impressa na página de créditos. Não é obrigatória, mas parece uma boa política ter manuais de RPG em bibliotecas infanto-juvenis. Então, para que dificultar? Aqui na Devir, usamos os serviços da Câmara Brasileira do Livro para obter a ficha.
A classificação indicativa é obrigatória e só pode ser emitida pelo Ministério da Justiça. A editora pode sugerir uma faixa etária para a qual o manual de RPG não seria apropriado, mas o Ministério da Justiça tem a palavra final e não permite autoclassificação.

7. Revisar as provas da diagramação e fazer as emendas

Depois de diagramado o livro, é costume imprimir várias "provas", que serão analisadas detalhadamente pelo revisor.
A primeira prova talvez seja a mais importante. Nesta etapa, o revisor tem de se preocupar principalmente em cotejar o texto diagramado com o último arquivo preparado e validado, para ter certeza de que não houve saltos. Também deve atentar para várias coisas: ilustrações que cobrem o texto, números de página fora de sequência, falta de padronização dos títulos e cabeçalhos, problemas na hifenização (principalmente divisão silábica ao fim de cada linha), ocorrência de linhas órfãs e viúvas,  erros ortográficos ou gramaticais que possam ter escapado ao preparador etc.
Terminada a primeira revisão, a prova volta para o diagramador, para que sejam feitas as correções pedidas pelo revisor (chamadas de "emendas"). Provavelmente será gerada uma segunda prova.
Daí o revisor precisa "bater" a segunda prova com a primeira. Em outras palavras, comparar detalhadamente uma e outra, para ter certeza de que todas as emendas foram feitas e de que nenhum outro problema foi introduzido entre uma prova e outra.
O processo de revisão e emendas será repetido algumas vezes. Alguns livros de RPG exigem três ou quatro provas. Já vi casos em que foram necessárias oito provas, mas são exceções.

8. Papel e gráfica

A esta altura da produção, já se tem ideia de como será o livro físico: quantas páginas terá, se a impressão será em preto e branco, em duas ou quatro cores, sobre que tipo de papel será impresso, se terá capa mole ou dura, quais serão os acabamentos especiais da capa etc.
É o momento de entrar em contato com os fornecedores de papel e as gráficas e descobrir quanto será preciso investir para imprimir o livro e qual será o tamanho da tiragem.

9. Fechar os arquivos para a gráfica

Hoje em dia, as gráficas trabalham com a tecnologia CTP (Computer to Plate). Um arquivo digital é gravado diretamente sobre a chapa de impressão com o auxílio de um laser.
"Fechar" o arquivo para impressão é gerar um PDF de alta qualidade. Antes de enviá-lo à gráfica, costumamos submeter o PDF a alguns testes, usando o Adobe Acrobat, para verificar se não há problemas.

10.  Rever as provas da gráfica

Antes de gravar a chapa de impressão, a gráfica emite algumas provas para a apreciação do produtor editorial. São basicamente dois tipos de provas:
a. A prova da "plotter", também chamada por hábito de "heliográfica". Com esta prova, pode-se ter uma ideia de como serão montados os cadernos que compõem o livro.
b. A prova digital da capa, que ajuda a verificar se as cores impressas correspondem às cores que o designer esperava.
O produtor editorial analisa essas provas com cuidado, para ter certeza de que as páginas serão cortadas no lugar certo, de que os cadernos serão montados na ordem correta etc. Esta também é a última chance de encontrar e corrigir probleminhas de texto e diagramação.
Após a aprovação da plotter e da capa, a gráfica seguirá com seu trabalho. Se essas provas não forem liberadas pelo editor ou se houver alterações a fazer, o processo se repete, até tudo ser aprovado.

***

Aqui termina a produção editorial. Agora é esperar os exemplares impressos chegarem da gráfica.
Nos próximos posts, vou tentar explicar melhor e ilustrar com exemplos cada uma das etapas, elencando também as qualidades e habilidades recomendadas para alguém que queira trabalhar na produção editorial de RPGs.

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