O grupo “Interpretar e Aprender” surgiu como ideia nos corredores da Universidade de São Paulo por três estudantes de História interessados em integrar diversão e aprendizagem. Apaixonados tanto por narrativas fantásticas quanto pelo ato de ensinar, estes amigos decidiram criar um grupo cujo intuito seria trabalhar, de forma prazerosa, os conteúdos escolares - e não haveria melhor maneira de fazê-lo do que utilizando o RPG, ou Role Playing Game.

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Os jogos e a vida

   Assim como as festas populares, por muito tempo, os jogos foram considerados um aspecto menos digno de estudos ou de reflexões por parte dos intelectuais do Ocidente. Jogos e festas foram considerados ora atividades improdutivas ou triviais, ora mera atenuação da condição humana, momentos úteis para que nos esqueçamos da morte ou nos aliviemos do cansaço físico e mental causados pelo labor.
    Se as festas populares encontraram caminho entre estudos que acabaram por redimí-la, contudo, os jogos ainda continuam marginalizados dentro da comunidade acadêmica apesar do trabalho de autores como o historiador Johan Huizinga. Muito mais associados à indústria do entretenimento, os jogos são hoje muito mais identificados com a alienação e com o não-fazer do que pensados a partir de sua trajetória ou mesmo de sua função social.
    Como um pequeno grupo de historiadores (entre os quais se destaca, além de Huizinga, o brasileiro Hilário Franco Jr.), alguns filósofos de peso se dedicaram a pensar os jogos. O germânico Friedrich Schiller, famoso por suas influências sobre o Romantismo e por sua defesa do humanismo, foi um dos grandes responsáveis por pensar os jogos como parte paradigmática da formação social dos indivíduos. Com ele e, posteriormente, com Nietzsche, o jogo deixaria de ser irrelevante para passar a ser visto como uma simulação da agonia existencial, uma forma didática de se ensinar e vivenciar o conflito, a luta e a disputa em um ambiente controlado. Assim, o jogo não só deixaria de ser improdutivo ou trivial como não poderia ser pensado como um atenuante da condição humana, uma vez que ele é um dos espaços de formação da compreensão do que é ser humano em uma dada sociedade.
    Este ponto de vista, contudo, não foi capaz de expiar a culpa dos jogadores e de seus fãs. Jogos de azar são considerados crime no Brasil, jogos de videogame foram considerados coisa de criança até o início do século XXI e jogos educativos são vistos com desdém por alunos e por professores mais tradicionais. Jogos de arena ou são associados a uma política de panis et circenses ou necessitam ser categorizados como esporte para se nobilitarem, uma vez que, assim, seu caráter alienador seria alentado por sua faceta saneadora e saudável. Apesar da defesa filosófica, os jogos, enfim, são mais tratados como alienação do que como momentos privilegiados para a educação e formação humanas.
    O título Brincando de Matar Monstros, do jornalista Gerard Jones, foi publicado há alguns anos no Brasil pela editora Conrad. Fundamentado no trabalho e nas experiências de psicólogos, em seu livro, Jones faz uma defesa aberta da fantasia, dos videogames e da violência de faz-de-conta como aspectos necessários da formação infantil. Em diversos momentos, contudo, o que está em questão são os jogos em si e, nesses momentos, podemos observar alguns dados reveladores.
    Um exemplo está ainda na introdução do livro: Jonathan era um garoto que trabalhava com jogos e brincadeiras violentas obsessivamente, o que causou consternação em seus pais. Levado à psiquiatra Lynn Ponton, em algum tempo se descobriu que aquela seria uma maneira que a criança encontrara para lidar com o bullying que sofria e, conforme se buscou lidar com este conflito, as brincadeiras diminuiram. Depois do 11 de setembro de 2001, contudo, as atividades cresceram de novo - e isso não aconteceu só com ele, inúmeras crianças utilizaram jogos ou brincadeiras que envolviam violência 'de mentirinha' como forma de melhor compreender o que ocorrera no World Trade Center. Segundo Ponton, a criança só não se sentia insegura e assustada enquanto brincava - era o momento em que se sentia bem. Ela escreveu que estas brincadeiras davam ao garoto um controle sobre situações sobre as quais nem ele nem outros tinham poder, mas creio que, sobretudo, as brincadeiras permitiam que Jonathan encontrasse formas de controlar seu universo sem deixá-lo à deriva de um acaso assustador.
     Como diversos rituais sociais, os jogos estabelecem limites para o acaso e criam um ambiente de tensão e conflito controlados. A vida humana é plena de acasos, tensão e conflito descontrolados e imprevisíveis e, ao permitir que um indivíduo lide com estas forças sob riscos controlados, os jogos possibilitam uma melhor compreensão de seu próprio lugar no mundo. A agonia dá lugar a uma sua simulação, onde as possibilidades de vitória ou derrota dependem sobretudo da capacidade dos jogadores - mesmo em jogos de azar, onde há uma questão analítica de probabilidades. Na vida, não se pode dizer o mesmo, uma vez que o meritoso sem sorte muitas vezes acaba por se curvar a afortunados sem mérito.
    Os jogos, portanto, não são exatamente alienadores e nem são insignificantes: são eventos que emulam a própria existência humana, mas sob limites compreensíveis e inteligíveis, sob riscos calculados. O jogo permite que vivamos inúmeras vidas, que recomecemos quando perdemos, que tenhamos respostas definitivas em casos de vitória, derrota ou mesmo empates, que existamos em dimensões de tamanho, ordem e sentido claros e específicos. Não me parece, assim, que os jogos nos alienam de nossa condição humana, mas, antes, que são capazes de nos colocar em contato com ela de modo que não necessitemos temê-la.

Fontes:
HUIZINGA, Jogan. Homo ludens. São Paulo: Perspectiva, 2004.
JONES, Gerard. Brincando de Matar Monstros. São Paulo: Conrad, 2004.
SCHILLER, Friedrich. Cartas sobre a educação estética do Homem. São Paulo: Iluminuras, 2002.

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